28 fevereiro 2010

AS CHEIAS DO MONDEGO

A recente tragédia das inundações ocorridas na Madeira e a inevitável discussão que se lhe seguiu sobre o encanamento das ribeiras trouxeram-me à memória experiências e saberes antigos sobre os caprichos das águas, os quais me apeteceu partilhar convosco nesta chuvosa tarde de sábado. Refiro-me às famosas cheias do Mondego, fenómeno que conheci e vivi anos a fio quando era mais novo.
Conheço as cheias do Mondego desde que me conheço. Guardo na memória quase inconsciente, de criança muito pequena, imagens difusas de uma viagem de Ançã a Coimbra, em que houve que atravessar um lençol de água entre o Choupal e o Campo do Bolão. Guardo na memória de adolescente o desespero das colheitas de arroz tragadas pelas águas no início do Outono, numa época em que a palavra "apoios" não fazia parte do léxico da agricultura. Continuo a rever a beleza trágica dos campos inundados, em repouso, numa planura imensa, onde só o recorte das linhas de salgueiros e choupos deixava adivinhar o traçado dos cursos de água e dos caminhos. Por tudo isto, convivo naturalmente com as cheias, com o fatalismo próprio de quem nasceu e cresceu no campo, tal como convivem com o fogo os que nasceram e se criaram na serra.
Quem vive na Coimbra de hoje, de onde as cheias foram arredadas vai para 40 anos, já se esqueceu desses tempos. A própria anatomia da cidade também já se modificou; veja-se a Igreja de Santa Cruz, cuja entrada se encontra agora ao nível do largo em frente. Todos os que passaram por Coimbra nos anos 50 ou 60 se lembram de que a igreja estava a um nível inferior ao da rua, havendo que descer uma dúzia de degraus para nela entrar. Pois bem, isto acontecia porque em 1858, quando o ministro das obras do reino, Visconde da Luz, mandou abrir a rua que tem o seu nome, se resolveu altear parte do Largo de Sansão, de modo a evitar que as águas do Mondego invadissem a igreja, como vinha acontecendo desde há muitos anos.
Caminhando no tempo mais lá para trás, sabe-se que a muralha que hoje ladeia o rio, destinada a proteger a cidade das cheias, foi mandada estudar por D. João III em 1538 e que, um ano após, aquele rei escreveu à Câmara de Coimbra aprovando "a obra da parede ao longo do rio" e propondo que a mesma fosse parcialmente custeada por uma "finta" a lançar sobre os moradores ribeirinhos. E assim se vê que ainda o futebol não o era e já as fintas existiam, entendendo-se então por finta um imposto extraordinário. E como ninguém gosta de ser fintado, e muito menos de ser fintado pelos impostos, mais de um século depois daquela carta real, ainda a Câmara não tinha decidido fazer a obra.
Mas desde quando datam as cheias de Coimbra? Não sei dizê-lo ao certo. Mas certo é que o rio corria outrora muito mais fundo do que hoje e que o seu leito se foi progressivamente assoreando, tendo alteado 8 a 10 metros no último milénio. Acresce ainda que, em tempos idos, o estuário do Mondego vinha até Montemor-o-Velho, sendo a distância entre Coimbra e o mar muito menor do que é hoje, o que facilitava o escoamento das águas. Certo é, também, que em 1461, D. Afonso V, em face dos estragos que as cheias causavam, "restabeleceu a proibição de queimadas na distância de uma légua, a contar das margens do rio, desde Coimbra até Ceia". E o verbo "restabelecer" mostra que o fenómeno era antigo, ainda que as causas se tenham mantido actuais até hoje, já que a destruição do coberto vegetal continua a ser causa de erosão dos solos, por esse planeta fora.
Mas por muito que Afonso V legislasse, nem por isso o rio deixou de assorear. O assunto foi alvo de sucessivos estudos até que, em 1790, o padre Estevão Cabral apresentou a solução que viria a vingar: – A areia sempre veio e sempre virá, e sempre passou nos séculos antigos! – disse o frade. O que era preciso era criar uma saída franca, fazer aumentar a corrente e esta se encarregaria de levar os detritos para o fundo do mar, o seu lugar natural. E consuma-se a ideia de criar um leito alternativo, um canal em linha recta de Coimbra até ao mar, o "Rio Novo", que viria substituir o antigo leito, já preguiçoso e cansado, o "Rio Velho".
E as obras começam frenéticas pouco depois, ordenadas por alvará de 28 de Março de 1791. E com elas veio a valorização do campo. Mas veio também a prova de que, nisto de cálculos de engenharia, também os ministros de Deus se enganam: é que o rio continuou a assorear, só que, agora, de forma muito mais rápida!
Desta enorme obra hidráulica, ainda hoje resta o leito entre Coimbra (Almegue) e Montemor-o-Velho, rasgado a direito pelo vale adentro e ladeado por diques de areia e lama. São estes diques que, uma vez ultrapassados pela altura da água no rio, rapidamente quebram, inundando o campo, que é mais fundo, com tremenda rapidez. Já era assim há muitos anos e assim voltou a ser, mais recentemente, em finais de Janeiro de 2001.
Mas aquela obra de há 200 anos deixou-nos mais: foi com o intuito de corrigir o traçado do rio na curva do Almegue, onde em tempos tinha havido a "Quebrada Grande", e de evitar que o rio quebrasse para o Campo do Bolão, que se mandou então plantar uma frondosa mata de 100 hectares, à qual foi dado o romântico nome de "Choupal" e onde se diz que o Hilário cantava, alta noite, para gáudio das tricanas extasiadas.
Os dois mapas abaixo, retirados do velhinho Guia de Portugal de Sant’anna Dionísio, permitem comparar os traçados do Mondego nas situações anterior e posterior à construção do Rio Novo. É curioso notar no primeiro mapa a localização do Campo do Bolão – que se estende da Cidreira ao local onde hoje treina a Briosa – e, no segundo, a localização estratégica do Choupal, no lado de fora da curva à entrada do "encanamento moderno", bem como o aparecimento das vias férreas.
Uma última nota para um detalhe picaresco, que a comparação dos mapas nos permite observar: o lugar situado na confluência da Vala de Ançã com a Vala do Norte, que no Séc. XVIII era chamado de "Lava-Rabos", onde a travessia da Vala real do Norte era feita a vau, aproveitando-se a ocasião para lavar os ditos cujos, passou a chamar-se "S. João do Campo"! Por certo as cheias passaram a ser menos elevadas, diluindo-se o efeito higiénico da travessia da vala...
É caso para dizer que "há bens que vêm por mal"!
Zé Veloso