22 abril 2010

ESTUDANTES CONTRA FUTRICAS. UMA ESTÓRIA DE ÍNDIOS E COWBOYS?

Os comentários de Ricardo Figueiredo aqui no blogue têm-nos trazido vivências da velha Alta desaparecida e referências aos seus antigos habitantes autóctones, os Salatinas, os quais ele nos conta que mantinham com os estudantes uma boa relação. Foi para mim uma surpresa a existência de Salatinas, Chibatas e outros mais, já que na bibliografia dominante – escrita por antigos estudantes – não se fazem distinções entre os futricas, sendo todos eles apresentados por igual como inimigos figadais dos estudantes.
Mas é curioso, e confirma os comentários de Ricardo Figueiredo, que as grandes zaragatas entre estudantes e futricas são quase sempre descritas na Baixa, não acontecendo o mesmo na Alta, salvo as costumadas escaramuças que havia no rescaldo das fogueiras, quando os calores da dança incendiavam ciúmes e o verniz estalava entre uns e outros.
Mas o relacionamento conflituoso entre estudantes e futricas é uma estória cabeluda, como as guerras entre índios e cowboys. Uma estória em que uns (os índios, ou melhor, os futricas) habitavam um território que outros (os cowboys, ou melhor, os estudantes) viriam um dia a ocupar. Afinal, uma estória que, na origem, é semelhante a tantas outras de que a História está cheia, uma espécie de conflito étnico, a provar quão difícil é a co-existência pacífica entre ocupantes e ocupados, entre dominadores e dominados, tanto nos tempos idos como nos dias de hoje.
Voltando aos índios e cowboys, as estórias aos quadrinhos do meu tempo de garoto sempre me mostraram um intrépido branco – Bufallo Bill, Davy Crockett…– que, invariavelmente, se batia contra um bando de pérfidos peles vermelhas, liderados por um qualquer Boi Sentado. Posta desta maneira, a estória era sempre fácil de entender: de um lado os bons, do outro lado os maus.
Lembro-me de que um dia, eram os meus miúdos pequenos, me chamaram a correr ao televisor, numa manhã de domingo:
– Pai! Não estamos a entender nada desta fita. Quem são os bons?
– Depende do ponto de vista, meus filhos, as coisas nem sempre são assim tão simples. Tenho de vos contar a história do princípio...
Pois é. Estavam os habitantes de Coimbra postos em sossego, qual D. Inês no remanso dos seus doces fruitos, quando D. Diniz lhes resolveu mandar de presente uma horda desordeira que já em Lisboa se tinha distinguido por brigar com os habitantes do burgo. E, não contente com isso, toma os estudantes debaixo da régia protecção, manda que nenhum morador de Coimbra lhes faça agravo, determina que não possam ser julgados pelo foro comum nem ficar presos na cadeia onde os demais habitantes são encarcerados, ordena que uma comissão paritária avalie da justeza das rendas a cobrar pelo aluguer dos aposentos... e mais uma catrefa de regalias que me dispenso de enumerar. Ao invés, não consta que tenha dado, aos então habitantes da cidade, direitos simétricos que os defendessem dos eventuais abusos dos estudantes.
Se a tudo isto juntarmos os desmandos próprios da juventude em bando, fora de casa, os calotes por pagar em épocas de mesada curta ou de noitada longa, a boa vida de alguns que se podiam dar ao luxo de chumbar numa cadeira para ter um ano a mais de pândega e a jactância de quem se prepara para vir a ser a inteligência do reino, teremos o quadro quase pintado.
E digo quase, porque faltam ainda duas pinceladas. Antes de mais, o desprezo com que o estudante, alcandorado na Alta da cidade, tratava o povo que habitava a Baixa, chamando-lhe futrica, palavra que fede a metros de distância e que se admite que derive de fitricafilho de tricana – que o mesmo seria dizer "filho da mãe"…
E, por último – cherchez la femme! –, contam os livros que as tricanas, para além de se permitirem certas liberdades com os estudantes, sempre torciam pelos de fora, aquando dos arraiais de pancadaria com os da casa!
Torceriam? Provavelmente sim, já que é histórica e compreensível a atracção da mulher de Coimbra pela estudantagem jovem, irreverente, bem-falante e galanteadora, passaporte-quimera para uma vida melhor. Mas haverá que dar algum desconto, porque as crónicas da época foram escritas por quem sabia escrever, ou seja, pelos os ocupantes.
O conflito durou séculos. Continuava vivo no séc. XIX, altura em que, como muito bem retrata Eça de Queiroz no Conde de Abranhos, futricas e estudantes eram duas classes imiscíveis.
Mas chegou um belo dia o séc. XX e, com ele, o futebol. E o conflito encontrou um outro tabuleiro onde dissipar as suas tensões. A pancadaria mudou-se então das tabernas e ruelas da Baixa para o peão da Arregaça e a bancada do Santa Cruz, alimentando uma rivalidade Académica - União que durou até aos anos 70. E a ciumeira deixou de ser exclusiva da sorte aos amores para passar a abarcar também a sorte ao jogo.
Depois de um quadro destes, custa-me explicar de que lado estariam os bons e os maus neste conflito, como aliás em muitos outros que grassam por esse mundo fora. Dependerá sempre do ponto de vista. Como diria o outro: – É a vida...
Zé Veloso

07 abril 2010

TRICANAS, XAILES E CAPAS. TRANSFORMA-SE O AMADOR NA COUSA AMADA…

Tendo ainda nos olhos e na boca o gosto das amêndoas da Páscoa, faço o gosto à escrita voltando hoje a evocar as tricanas, as tais que os estudantes de antanho diziam ser – tal como as amêndoas – doces, bonitas e sempre bem apresentadas.
Trindade Coelho, que cursou Direito entre 1880 e 1885, dizia que tinham “uma cara quase sempre bonita, e espirrando sempre vivacidade; e naqueles braços, naquelas pernas, naquele busto, quando gesticulam, quando marcham, quando estão paradas, qualquer coisa que deve ser a própria graça, como só os artistas apreciam."

Pela descrição se vê que, para os estudantes de In Illo Tempore, as tricanas eram a perfeição absoluta. E sê-lo-iam, com certeza, mas algum desconto teremos de dar. As tricanas eram um bem escasso, sem concorrência à vista, numa cidade onde a população juvenil masculina, vinda de todos os lugares do reino, viveu durante séculos na Alta num regime de quase internato. E acresce que os livros que nos relatam a Coimbra académica de outros tempos são livros de memórias de antigos estudantes, escritos já no declinar da vida, quando se esquece o mal e do bem ficam as saudades.
Mas voltemos ao In Illo Tempore de Trindade Coelho e vejamos o retrato que ele fez do traje das tricanas, retrato que julgo tenha inspirado aquelas figurinhas de barro – com o estudante de guitarra na mão e a tricana de perna cruzada a seu lado – que se vendiam na feira do Espírito Santo aos Olivais:
"Como andam sempre muito afinadinhas, desde os pés à cabeça...vão-se os olhos a olhar para elas e fica a gente a dizer consigo que nunca viu mulheres assim... Sua chinelinha de biqueira, em que só lhes cabe metade do pé; sua meia branca, ou às riscas, muito esticada; saia de chita, das cores mais claras, deixando ver os tornozelos e acima dos tornozelos duas polegadas de perna; aquele aventalinho muito pequenino, que é mais um chique que outra coisa; o chambre de chita clara, aberto no peito em decote quadrado; e então o xaile de barras, ou a capoteira, passando por baixo do braço direito e lançando (com elegância que se não descreve, mas que os estudantes copiaram para as suas capas) por cima do ombro esquerdo!"
As últimas linhas desta citação levantam uma observação bem curiosa sobre uma certa forma do traçar da capa, forma que os retratos da época confirmam mas que tinha já caído em desuso no meu tempo.
Mas será que os estudantes copiaram das tricanas apenas a forma displicente do traçar da capa em momentos de descontracção? Ou terão copiado ainda mais, e ter-se-ão inspirado no franjado do xaile para começar a rasgar as suas capas? Eu vou por aí! Como dizia o poeta, "transforma-se o amador na cousa amada, por virtude do muito imaginar".
No meu tempo de Coimbra – onde as colegas tinham tomado já o lugar que antes fora das tricanas – dizia-se que cada franja da capa correspondia a uma conquista, ainda que de um fugaz beijo se tratasse. E os mais gabarolas retalhavam as desgraças capas, quais pistoleiros do Oeste enchendo de mossas as coronhas dos revólveres.
Na Coimbra universitária de hoje, onde a mulher está agora em maioria, é natural que o significado seja já outro. Tendo feito a pergunta a algumas raparigas estudantes, apurei que os rasgos podem ter significados vários, ou mesmo nenhuns, mas há um detalhe interessante, uma vez mais ligado às lides amorosas: quando se namora, faz-se um grande rasgo pela capa adentro e, se o namoro acaba, coze-se o rasgo com linha da cor da Faculdade!
Estranho costume este! Parece querer mostrar que para os males de amor sempre haverá remendo. Mas que das cicatrizes ninguém se livra…

Zé Veloso

PS: No final do primeiro quartel do Séc. XX a tricana ainda estava bem no coração dos estudantes: no dia 31 de Janeiro de 1924 houve um jogo particular Académica - Salgueiros (1-0) em que todos os jogadores da equipa da Académica – que na altura ainda não tinha emblema – se apresentaram com uma figura de tricana ao peito.

Foto ao lado: Galante