Os comentários de Ricardo Figueiredo aqui no blogue têm-nos trazido vivências da velha Alta desaparecida e referências aos seus antigos habitantes autóctones, os Salatinas, os quais ele nos conta que mantinham com os estudantes uma boa relação. Foi para mim uma surpresa a existência de Salatinas, Chibatas e outros mais, já que na bibliografia dominante – escrita por antigos estudantes – não se fazem distinções entre os futricas, sendo todos eles apresentados por igual como inimigos figadais dos estudantes.
Mas é curioso, e confirma os comentários de Ricardo Figueiredo, que as grandes zaragatas entre estudantes e futricas são quase sempre descritas na Baixa, não acontecendo o mesmo na Alta, salvo as costumadas escaramuças que havia no rescaldo das fogueiras, quando os calores da dança incendiavam ciúmes e o verniz estalava entre uns e outros.
Mas o relacionamento conflituoso entre estudantes e futricas é uma estória cabeluda, como as guerras entre índios e cowboys. Uma estória em que uns (os índios, ou melhor, os futricas) habitavam um território que outros (os cowboys, ou melhor, os estudantes) viriam um dia a ocupar. Afinal, uma estória que, na origem, é semelhante a tantas outras de que a História está cheia, uma espécie de conflito étnico, a provar quão difícil é a co-existência pacífica entre ocupantes e ocupados, entre dominadores e dominados, tanto nos tempos idos como nos dias de hoje.
Voltando aos índios e cowboys, as estórias aos quadrinhos do meu tempo de garoto sempre me mostraram um intrépido branco – Bufallo Bill, Davy Crockett…– que, invariavelmente, se batia contra um bando de pérfidos peles vermelhas, liderados por um qualquer Boi Sentado. Posta desta maneira, a estória era sempre fácil de entender: de um lado os bons, do outro lado os maus.
Lembro-me de que um dia, eram os meus miúdos pequenos, me chamaram a correr ao televisor, numa manhã de domingo:
– Pai! Não estamos a entender nada desta fita. Quem são os bons?
– Depende do ponto de vista, meus filhos, as coisas nem sempre são assim tão simples. Tenho de vos contar a história do princípio...
Pois é. Estavam os habitantes de Coimbra postos em sossego, qual D. Inês no remanso dos seus doces fruitos, quando D. Diniz lhes resolveu mandar de presente uma horda desordeira que já em Lisboa se tinha distinguido por brigar com os habitantes do burgo. E, não contente com isso, toma os estudantes debaixo da régia protecção, manda que nenhum morador de Coimbra lhes faça agravo, determina que não possam ser julgados pelo foro comum nem ficar presos na cadeia onde os demais habitantes são encarcerados, ordena que uma comissão paritária avalie da justeza das rendas a cobrar pelo aluguer dos aposentos... e mais uma catrefa de regalias que me dispenso de enumerar. Ao invés, não consta que tenha dado, aos então habitantes da cidade, direitos simétricos que os defendessem dos eventuais abusos dos estudantes.
Se a tudo isto juntarmos os desmandos próprios da juventude em bando, fora de casa, os calotes por pagar em épocas de mesada curta ou de noitada longa, a boa vida de alguns que se podiam dar ao luxo de chumbar numa cadeira para ter um ano a mais de pândega e a jactância de quem se prepara para vir a ser a inteligência do reino, teremos o quadro quase pintado.
E digo quase, porque faltam ainda duas pinceladas. Antes de mais, o desprezo com que o estudante, alcandorado na Alta da cidade, tratava o povo que habitava a Baixa, chamando-lhe futrica, palavra que fede a metros de distância e que se admite que derive de fitrica – filho de tricana – que o mesmo seria dizer "filho da mãe"…
E, por último – cherchez la femme! –, contam os livros que as tricanas, para além de se permitirem certas liberdades com os estudantes, sempre torciam pelos de fora, aquando dos arraiais de pancadaria com os da casa!
Torceriam? Provavelmente sim, já que é histórica e compreensível a atracção da mulher de Coimbra pela estudantagem jovem, irreverente, bem-falante e galanteadora, passaporte-quimera para uma vida melhor. Mas haverá que dar algum desconto, porque as crónicas da época foram escritas por quem sabia escrever, ou seja, pelos os ocupantes.
O conflito durou séculos. Continuava vivo no séc. XIX, altura em que, como muito bem retrata Eça de Queiroz no Conde de Abranhos, futricas e estudantes eram duas classes imiscíveis.
Mas chegou um belo dia o séc. XX e, com ele, o futebol. E o conflito encontrou um outro tabuleiro onde dissipar as suas tensões. A pancadaria mudou-se então das tabernas e ruelas da Baixa para o peão da Arregaça e a bancada do Santa Cruz, alimentando uma rivalidade Académica - União que durou até aos anos 70. E a ciumeira deixou de ser exclusiva da sorte aos amores para passar a abarcar também a sorte ao jogo.
Depois de um quadro destes, custa-me explicar de que lado estariam os bons e os maus neste conflito, como aliás em muitos outros que grassam por esse mundo fora. Dependerá sempre do ponto de vista. Como diria o outro: – É a vida...
Zé Veloso