07 abril 2010

TRICANAS, XAILES E CAPAS. TRANSFORMA-SE O AMADOR NA COUSA AMADA…

Tendo ainda nos olhos e na boca o gosto das amêndoas da Páscoa, faço o gosto à escrita voltando hoje a evocar as tricanas, as tais que os estudantes de antanho diziam ser – tal como as amêndoas – doces, bonitas e sempre bem apresentadas.
Trindade Coelho, que cursou Direito entre 1880 e 1885, dizia que tinham “uma cara quase sempre bonita, e espirrando sempre vivacidade; e naqueles braços, naquelas pernas, naquele busto, quando gesticulam, quando marcham, quando estão paradas, qualquer coisa que deve ser a própria graça, como só os artistas apreciam."

Pela descrição se vê que, para os estudantes de In Illo Tempore, as tricanas eram a perfeição absoluta. E sê-lo-iam, com certeza, mas algum desconto teremos de dar. As tricanas eram um bem escasso, sem concorrência à vista, numa cidade onde a população juvenil masculina, vinda de todos os lugares do reino, viveu durante séculos na Alta num regime de quase internato. E acresce que os livros que nos relatam a Coimbra académica de outros tempos são livros de memórias de antigos estudantes, escritos já no declinar da vida, quando se esquece o mal e do bem ficam as saudades.
Mas voltemos ao In Illo Tempore de Trindade Coelho e vejamos o retrato que ele fez do traje das tricanas, retrato que julgo tenha inspirado aquelas figurinhas de barro – com o estudante de guitarra na mão e a tricana de perna cruzada a seu lado – que se vendiam na feira do Espírito Santo aos Olivais:
"Como andam sempre muito afinadinhas, desde os pés à cabeça...vão-se os olhos a olhar para elas e fica a gente a dizer consigo que nunca viu mulheres assim... Sua chinelinha de biqueira, em que só lhes cabe metade do pé; sua meia branca, ou às riscas, muito esticada; saia de chita, das cores mais claras, deixando ver os tornozelos e acima dos tornozelos duas polegadas de perna; aquele aventalinho muito pequenino, que é mais um chique que outra coisa; o chambre de chita clara, aberto no peito em decote quadrado; e então o xaile de barras, ou a capoteira, passando por baixo do braço direito e lançando (com elegância que se não descreve, mas que os estudantes copiaram para as suas capas) por cima do ombro esquerdo!"
As últimas linhas desta citação levantam uma observação bem curiosa sobre uma certa forma do traçar da capa, forma que os retratos da época confirmam mas que tinha já caído em desuso no meu tempo.
Mas será que os estudantes copiaram das tricanas apenas a forma displicente do traçar da capa em momentos de descontracção? Ou terão copiado ainda mais, e ter-se-ão inspirado no franjado do xaile para começar a rasgar as suas capas? Eu vou por aí! Como dizia o poeta, "transforma-se o amador na cousa amada, por virtude do muito imaginar".
No meu tempo de Coimbra – onde as colegas tinham tomado já o lugar que antes fora das tricanas – dizia-se que cada franja da capa correspondia a uma conquista, ainda que de um fugaz beijo se tratasse. E os mais gabarolas retalhavam as desgraças capas, quais pistoleiros do Oeste enchendo de mossas as coronhas dos revólveres.
Na Coimbra universitária de hoje, onde a mulher está agora em maioria, é natural que o significado seja já outro. Tendo feito a pergunta a algumas raparigas estudantes, apurei que os rasgos podem ter significados vários, ou mesmo nenhuns, mas há um detalhe interessante, uma vez mais ligado às lides amorosas: quando se namora, faz-se um grande rasgo pela capa adentro e, se o namoro acaba, coze-se o rasgo com linha da cor da Faculdade!
Estranho costume este! Parece querer mostrar que para os males de amor sempre haverá remendo. Mas que das cicatrizes ninguém se livra…

Zé Veloso

PS: No final do primeiro quartel do Séc. XX a tricana ainda estava bem no coração dos estudantes: no dia 31 de Janeiro de 1924 houve um jogo particular Académica - Salgueiros (1-0) em que todos os jogadores da equipa da Académica – que na altura ainda não tinha emblema – se apresentaram com uma figura de tricana ao peito.

Foto ao lado: Galante

6 comentários:

  1. Ricardo Figueiredo08 abril, 2010 17:05

    Meu caro
    Para já, tenho que te agradecer a motivação que me dás, para,ocupando o meu tempo, exercitar a minha memória e anexar,eventualmente, alguns factos ao tema
    Nascido em 1936, em plena Alta,ali morador até aos 10 anos e depois, como e com os salatinas,desterrado para o Bairro de Celas. Revivo alguns factos.Não me lembro de ver tricanas genuinas, com excepção de algumas vizinhas, já moçoilas e descendentes -Isabel da Malha- que dançavam no Rancho de Coimbra.
    Seriam tricanas(?) as avós e mães de alguns dos companheiros de escola primária (da Boavista), cujos pais seriam (?) antigos estudantes de Coimbra, como eram apontados.Lembro, amigos, já em segunda geração, netos e/ou filhos de antigas engomadeiras, lavadeiras,cozinheiras, criadas, vivendo na ALTA, nas ruas do Forno, Borralho, Trindade, Cozinhas, Rego dÁgua,etc, no universo estudantil.
    Na rua da Trindade, em prédio de alguns andares,frente à tasca do Cabaça, que era conhecido como "Viveiro", pois o rapazio que de lá saía era tanto, que,quando não sabiamos donde vinha, diziamos que era do "viveiro".Algumas das nossas vizinhas, onde conheciamos a prole, mas não o progenitor, tinham alcunhas, ligadas à ocupação-engomadeira, lavadeira, etc, ou outras(Cacaus, Turcas, Pinta Pera,Gracinda dos Tamancos ).Mulheres de muita garra que lutaram e criaram filhos/filhas numa forte intenção de mudança de rumo, na vida.Muitas conseguiram, outras nem tanto..
    Miúdos da minha rua, como eu, de pé mais ou menos descalço-(eu para jogar a bola,tirava as botas, ou por terem "brochas" ou por terem pneu no rasto e não pegar no esférico de trapos)-herdaram notórias caracteristicas paternas.Dizia-se" tem a esperteza do pai..o conhecido dr.....)É malandro, como o pai, dr...,grande boémio...
    E, também, muitos venceram e fizeram esquecer o seu contexto natal..E ajudaram-se, mutuamente. O meu primeiro emprego, finda a primária, foi apadrinhado pelo Adriano,companheiro de bairro,salatina, um de quatro irmãos,que não obteve diplomas, mas que se cultivou, na escola da vida, com um "genes", ao que se dizia,doutural.
    Há, em Coimbra, o GRUPO DOS SALATINAS" que tem motivado a lembrança da ALTA
    Haveria outras tricanas...mas de outras castas.

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  2. Ainda bem que os tempos mudaram; quantas Tricanas não terão sofrido amores nao correspondidos. Já diz a poesia popular:

    "Amor de estudante
    Não dura mais do que uma hora
    Toca o sinal vai para a aula
    Vem as férias vai-se embora"

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  3. O comentário de Rosa Brava chama a atenção para o outro lado da moeda. A vida não é a branco e preto…
    Costuma dizer-se que a História é escrita pelos vencedores, que tendem a ignorar o ponto de vista dos vencidos. No caso das tricanas, a sua história aparece-nos contada pelos estudantes.
    Ainda bem que os tempos vão mudando. Obrigado pelo comentário.

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  4. Uma pequena nota... Suponho que se tenha enganado acerca da data de curso de Trindade Coelho. Refere 1980 e 1985, mas o autor faleceu em 1908...

    Deve ter sido uma pequena gralha ;)

    Agradeço a informação fornecida no seu blog e espero por mais!!

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  5. Caro "Anónimo",
    Tem toda a razão. É uma gralha que irei de imediato corrigir. Segundo as informações que conheço, Trindade Coelho cursou Direito de 1880 a 1885.
    Muito obrigado.

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    Respostas
    1. Obrigada!! Ajudou imenso no meu trabalho de moda (PAF). :)

      P.S:Com o tempo que está, estes comentários bastante cómicos, animaram o dia do meu grupo!

      Até breve amigos!

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