17 maio 2010

AS (VERDADEIRAS) ORIGENS DA QUEIMA

    Terminada que está a Queima das Fitas deste ano, chegou a altura de responder ao repto lançado no último post: – Quais são, afinal, as origens da Queima? Estarão tais origens no Centenário da Sebenta, como é afirmado nos sites oficiais da Academia de Coimbra? Eu penso que não.
    Antes de mais, o Centenário da Sebenta ocorreu em 1899. Ora, António José Soares diz ter encontrado em 1900 referências à "antiga queima" e Alfredo de Pratt conta-nos, em 1899, como se queimavam as fitas e como eram as demais festividades, fazendo-o de forma que permite supor que já nessa época havia uma tradição.
    Voltando ao Centenário da Sebenta, evento bombástico que decorreu de 28 a 30 de Abril de 1899, as celebrações meteram Zés-Pereiras e muita algazarra, os caloiros foram emancipados, houve sarau e cortejos monumentais envolvendo cerca de 30 carros que desceram da Porta Férrea até à Baixa e 30 barcos que desfilaram no "Basófias". As semelhanças com a Queima são evidentes, nomeadamente no que toca ao cortejo e à emancipação dos caloiros, mas são também ilusórias, porque as festividades não coincidem no essencial, como adiante se mostra.
    Quanto ao queimar das fitas, ele fazia parte dos festejos levados a cabo pelos quartanistas no dia do ponto, o último dia de aulas, o qual acontecia, por via de regra, depois de 12 de Maio. Já o Centenário da Sebenta foi outra coisa: não se destinou a festejar o final do ano lectivo, não se queimaram as fitas, aconteceu antes do dia do ponto e foi organizado por uma comissão que integrava alunos de vários anos, enquanto a Queima sempre foi organizada pelos quartanistas (até ao interregno de 1969).
    Esta questão das festas da Queima terem sido, décadas a fio, organizadas pelos quartanistas, ou seja, por aqueles que só daí a um ano viriam a deixar Coimbra, é de facto intrigante. Mas por que razão não eram as festas organizadas pelos alunos finalistas, como em todo o lado?
    Calma, que para o entenderem tenho primeiro de explicar os quês e os porquês do que se queimava.
    As fitas que se queimavam eram umas fitas estreitas de algodão, da cor de cada faculdade, que serviam para atar as pastas em que se guardavam as sebentas. Eram queimadas pelos quartanistas com grande cerimonial, no dia do ponto. Como esse dia não era o mesmo para todas as faculdades, cada curso queimava as fitas em separado. Mas note-se que os escritos dessa época apenas referem os quartanistas de Direito e de Medicina, os cursos de maior tradição na nossa Universidade, ainda que isso possa doer aos meus colegas engenheiros.
    Uma vez queimadas as fitas no Largo da Feira, frente à Sé Nova, como hoje ainda o são, havia que dar um destino às cinzas. Os quartanistas de Medicina de 1903 não se deram a esse trabalho, pois ataram as fitas a um balão e fizeram-nas subir no ar enquanto ardiam. Outros as lançaram ao vento do alto da torre da Universidade. Mas o destino mais antigo consistia em trazê-las em procissão dentro de uma lata até à Porta Férrea e aí as enterrar numa cova aberta por um caloiro no chão térreo, posto o que todo o curso lhes urinava em cima a um só tempo.
    Estranho costume este que só durou até o chão ter sido calcetado, e que nem vejo como poderia manter-se nos dias de hoje. O pudor não me deixa imaginar as nossas quartanistas greladas de perna aberta em tais preparos; e grande teria de ser a cova, para conter o líquido orgânico de tanta gente, num cortejo onde a cerveja é de borla. Mas se o costume desapareceu, ficaram os seus vestígios: ainda há não muito tempo as fitas – fita estreita ou grelo – se queimavam num penico; e pelos anos 40 ainda havia o costume de levar um desses vasos no interior do carro da Queima e, ali mesmo, se tratar do rescaldo das cinzas.
    É altura de falarmos nas chamadas "pastas de luxo", pastas de acabamentos de veludo e monogramas de prata, que de tão estreitas para nada serviam, mas que tinham umas fitas largas, imponentes e lustrosas como as fitas largas de hoje. Eram oferecidas aos quartanistas pelos padrinhos ou pelas noivas e, naturalmente, não serviam para transportar nada, muito menos sebentas. Mas também não era preciso, porque diz a tradição que depois do 4º ano nunca se chumbava.
    E começa aqui a fechar-se o ciclo do significado e das origens da Queima: o último exame a sério era, na prática, o do final do 4º ano, aquele que dava direito à obtenção do grau de bacharel. Todo o esforço era feito até aí e, por isso mesmo, os correspondentes festejos, como se do fim do curso se tratasse – e para alguns assim era, já que o grau de bacharel permitia (como hoje volta a permitir) saídas profissionais.
    Mas, mesmo para os que ficavam, as velhas pastas com fitinhas para amarrar as sebentas já não tinham préstimo daí para a frente. Havia, sim, que urinar-lhes em cima, escarnecer dessas “fitas operárias” que eram lixo e substituí-las. Ao bacharel, o que importava não era mais estudar – pois que o último ano seriam favas contadas – mas sim afirmar o seu grau de forma que bem se visse, dizer ao país que estava ali uma sumidade, com direito a um lugar ao sol. Para isso ele precisava de outras fitas, bem largas, que pudesse ostentar com um ar potencialmente próspero. Eram (são) as fitas largas.
    Para os que continuassem em Coimbra, até à licenciatura, teriam um ano para as exibir. Para os que saíssem de Coimbra com o grau de bacharel, já poderiam afirmar lá na terra, como era costume dizer-se nos finais do Séc. XIX, que "tinham urinado à Porta Férrea".
    Zé Veloso

Foto a preto e branco : No largo da Feira, tendo por pano de fundo o edifício do Governo Civil, as fitas sobem ao céu levadas por um balão.

04 maio 2010

O SEGREDO DA QUEIMA DAS FITAS

    Às zero horas da próxima sexta-feira, ouvidas que forem as doze badaladas na torre da Universidade, arrancará a serenata monumental! Vem aí a Queima! Vai ser um regabofe!
    Os caloiros emancipar-se-ão; os semi-putos passarão a putos; os putos a quartanistas (ou candieiros); os grelados queimarão o grelo e soltarão as fitas; os antigos fitados porão cartola; os que já não põem nada terão à espera o posto de veteranos e passarão a guardiões do templo. Há cargos para todos, promoções em barda, toda a gente festeja! É este o segredo da Queima.
    Não admira que um jogo destes, em que todos ganham e as medalhas não se esgotam, tenha ressurgido com tanta força depois de uma década de interregno (1969/80) e se tenha espalhado, como rastilho de pólvora, a outras universidades.
    É claro que a dimensão dos festejos de hoje é outra. E nem assim poderia deixar de ser, numa Universidade que cresceu em exponencial, numa sociedade de maior abastança e numa época em que o lazer se profissionalizou.
    Hoje a Queima tem registo comercial, IVA, contratos milionários, e até um recinto próprio para as "noites do Parque" – o Queimódromo. Transformou-se numa máquina de produzir e comercializar inventos, oleada de ano para ano. Longe vai o tempo em que o parco lucro era oferecido a instituições de beneficência e os prejuízos se cobriam com um baile extra a realizar no Mi-carême do ano seguinte.
    Mas se tudo se tem vindo a transformar em comércio e multi-média, porque haveria a Queima de ser diferente? Nos anos 50 e 60 o cartaz da Queima, bem como o selo (que se colava no interior da pasta da praxe) eram distintivos importantes. Sinal dos tempos é eu ter penado dias na internet à procura do dito “cartaz da queima”, enquanto o motor de busca me devolvia sistematicamente, de link para link, o cartaz dos espectáculos no Queimódromo. Aqui ficam os dois para comparação: o do show buzines e o das actividades tradicionais (utilizando a terminologia da Organização), referindo-se ambos ao período de 7 a 14 de Maio.
    Só que, tal como nas grandes cidades, hoje temos não apenas a Queima propriamente dita mas também aquilo que me apetece apelidar de Grande Queima, período que chega quase aos dois meses e que abarca uma série de inventos desportivos, lúdicos, culturais, radicais e tudo o mais de que a malta se lembre para fazer esquecer que os exames estão à porta e que a vida são dois dias e que o pouco que de cá se leva é o muito que por cá se goza.
    Ah, grande Queima! Que saudades!!!...
    … apesar de no meu tempo ser tudo muito mais modesto: serenata na noite de quinta para sexta, sarau na sexta, baile de gala no sábado, garraiada no domingo, venda da pasta e verbena na segunda, queima do grelo e cortejo na terça, chá dançante na quarta... e ala que se faz tarde e os exames estão à porta!
    Naquele tempo nunca questionei o porquê destes festejos. Não era preciso. Eles estavam-me na massa do sangue e o que é endémico não se questiona. Mas hoje, ou porque a cidade deixou de ser eminentemente estudantil ou porque as praxes académicas soam um tanto a falso quando replicadas fora do seu contexto natural, muita gente procura o porquê e a origem destas tradições. E as respostas aparecem, seja em livros, seja em sites, seja até num simples blogue…
    Acontece, porém, que o autor deste blogue não tem sobre as origens da Queima uma opinião coincidente com a estória que é contada nos sites oficiais da academia, estória que constava já dos textos introdutórios ao Código da Praxe de 1993 e que, de tanto repetida, tenderá a converter-se da verdade oficial.
    Aí se diz que as origens da Queima estão no Centenário da Sebenta, opinião com a qual eu não concordo de todo.
    Mas isso fica para depois dos festejos, altura em que vos contarei sobre as origens da Queima uma outra estória, que me parece estar bem mais de acordo com História.
    Zé Veloso