26 julho 2010

ALTA DE COIMBRA. DA ANTIGUIDADE AOS DIAS DE HOJE

Perguntei no Facebook se na Coimbra de hoje ainda se diz "vou à Alta" ou "moro na Alta". Queria saber se o conceito de Alta ainda existe e se é sensivelmente o mesmo para todos. E a conclusão foi que, ao contrário do que acontece com a Baixa, cujos contornos e carácter se mantêm razoavelmente uniformes, o conceito de Alta é difuso, remete para as várias épocas da cidade e perdeu claramente identidade nos últimos 50 anos.
E é pena, ainda que inevitável! É pena porque “baixa” todas as cidades e vilas vão tendo: ele é a baixa do Porto, a baixa de Lisboa, a baixa de Águeda… e até a Caixa, que não é terra nenhuma, também tem as suas baixas. Mas Coimbra distinguia-se das demais terras porque, tendo embora a sua Baixa, tinha também uma Alta, cuja importância histórica e cuja identidade se impunha. Em mais nenhuma cidade se dizia "vou até à Alta", frase que ainda era vulgar ouvir nos anos 50 e 60. Cidades há onde se diz "vou ao Castelo" ou "vou à Sé"... Mas Alta, mesmo, só havia em Coimbra! (e nos hospitais, bem entendido).
Mas o que é (ou foi) então a Alta de Coimbra e de onde lhe vem tanta importância?
Se por Alta entendermos a "colina sagrada", poderemos dizer que a sua importância foi desde logo reconhecida pelos primeiros povos que aí se estabeleceram, muito provavelmente os Celtas, os quais terão tirado partido das potencialidades defensivas que o local oferecia. Supõe-se que tenha existido um castro algures na zona que vai dos Gerais ao Edifício das Matemáticas. Outros povos se lhes seguiram e todos terão beneficiado da localização daquele sítio, cuja defesa era facilitada pelas escarpas abruptas do lado do rio e pelo vale profundo que vai da Praça da República à Praça 8 de Maio, ficando apenas a descoberto o acesso pelos Arcos do Jardim, onde, na década de 40, existiam ainda os restos da muralha do castelo de Coimbra, defendendo a entrada na cidadela por esse lado.
Mas Coimbra (AEminio, Conimbriga, Colimbria…) foi crescendo colina abaixo e a sua parte alta foi-se despovoando a favor da baixa e do arrabalde, tal como em muitas outras terras onde a malta se cansou de subir escadinhas e ruelas e os castelos foram ficando sozinhos lá no alto, à espera de virem um dia a ser visitados pelos turistas de hoje.
E assim estaria a nossa “colina sagrada”, não fora em 1537 D. João III, que ansiava por ter em Portugal uma universidade que pudesse ombrear em fama com as de Bolonha, Salamanca e Oxford, decidir recambiar de novo e definitivamente para Coimbra o Estudo Geral. Para sua instalação disponibilizou o próprio Paço da Alcáçova – antiga morada de emires e de D. Afonso Henriques, que à data era residência da família real quando esta se deslocava a Coimbra – o qual passou a denominar-se Paço das Escolas, também conhecido por Gerais.
Foi aquela decisão que transformou radicalmente a vida de Coimbra e o destino do seu bairro alto – a Alta – que à época se encontrava bastante degradado. Citando António Rodrigues Lopes, como resultado daquele evento e da criação paralela de colégios das ordens religiosas, a população subiu em flecha, ao acrescentar-se-lhe mais 3000 escolares e o conjunto numeroso do corpo docente e respectivas hierarquias civis e religiosas. Segundo o mesmo autor, a população de Coimbra passou de 5.220 moradores em 1527 para cerca de 10.000 no decénio 1570/80, ou seja, duplicou em 50 anos.
Mas não se pense que toda esta tropa se espalhou anarquicamente pela cidade: ao invés, escolares e professores ficaram acantonados dentro dos limites da antiga muralha, com ordens expressas para não viverem fora da cidade velha, a antiga Medina árabe, Al-medina, cuja entrada principal ainda hoje guarda o nome de Porta de Almedina.
De faço, a Universidade daquele tempo era um regime de internato à escala da cidade, o qual determinou muitas das tradições académicas que chegaram aos nossos dias e das quais deixo aqui alguns exemplos:
- um “uniforme” que distinguia os estudantes dos demais – traje académico – a que mais tarde se haveria de chamar capa e batina;
- um ritmo diário determinado por um sino que marcava as horas de recolher ao estudo, de tomar as refeições e de avançar para as aulas – a cabra e não só;
- um foro judicial próprio e uma polícia académica a quem cabia zelar pelo cumprimento dos costumes: vestimenta, horários de recolher, escapadelas nocturnas para o bairro baixo – a Baixa. Quando a polícia académica acabou, nos finais do séc. XIX, começaram os alunos mais velhos a controlar os mais novos, dando outra lógica às troupes que já então apareciam…
Estas duas cidades complementares – a Alta e a Baixa – sendo que, aos olhos dos estudantes, a primeira era para o estudo e a segunda para a estúrdia, mantiveram-se imiscíveis até muito tarde. Na Baixa estavam os comerciantes e os serviços, e aí se concentravam, igualmente, a maioria das igrejas e conventos. A Baixa era dominada pela população não estudante de Coimbra, os futricas, e por lá se quedavam a maioria das tricanas. A Alta era dominada pelos estudantes; e as tricanas e futricas que lá residiam aparecem-nos referidas como sendo tricanas da Alta e futricas da Alta, distinção que pressupõem um certo grau de aculturação em relação aos seus congéneres da Baixa.
Os antigos limites da Alta mantiveram-se pelo menos até meados do séc. XIX. Segundo Sant’Anna Dionísio, apenas os estudantes e os lentes, submetidos a votos monásticos, dos colégios dos crúzios e dos diferentes recolhimentos de escolares na rua da Sofia podiam residir fora dos limites demarcados pela Couraça de Lisboa, pela Couraça do Apóstolos (“couraça” que tanto é nome de rua como é pano de muralha) e pela Porta de Almedina. Curioso que não se refiram limites para a retaguarda; mas tal não era necessário, pois que Monte Arroio, Santa Cruz e Cumeada eram quintas nessa altura.
Na década de 40 do séc. XX, a Alta foi alvo do maior crime urbanístico jamais perpetrado em Portugal, quando uma parte de si mesma foi implacavelmente demolida para dar lugar a novos edifícios, para que todo o ensino universitário ficasse concentrado nas imediações dos Gerais, na Cidade Universitária. Uma comunidade inteira de estudantes e futricas, berço e relicário das mais fundas tradições da Alta, foi desalojada de uma só vez, a golpes de picareta e camartelo. A Alta tremeu, vacilou… mas não caiu. O peso da tradição falou mais alto e a Alta, em lugar de sucumbir, alargou os seus limites.
Nas décadas de 50 e 60 o conceito de Alta alargava-se a toda a zona delimitada pelas colinas que se estendem da Conchada ao Jardim Botânico – passando por Montes Claros, Celas e Olivais – e, ainda, à área que vai até à Ladeira do Seminário. Grosso modo, pode dizer-se que a Alta era, à época em que andei por Coimbra, limitada a Norte e Nascente pelo perímetro conjugado das linhas dos eléctricos 4 e 3, englobando uma extensa área em cujo epicentro se situavam a Praça da República e a sede da Associação Académica de Coimbra, mantendo, para Sul, os antigos limites das Couraças e da Porta de Almedina.
Os limites da Alta de então foram plasmados no Código da praxe de 1957 e determinavam procedimentos e limitações que faziam sentido num contexto que eu bem conheci. É que nessa época, tal como séculos atrás, em toda aquela extensa área não se encontrava uma loja de modas, uma ourivesaria, um stand de automóveis, um consultório médico ou de advogado. Tal como séculos atrás, naquela área (naquela "Alta”), estavam as casas de estudantes e os cafés e mercearias de bairro, enquanto o grande comércio, os serviços e as casas menos recomendáveis se quedavam pela Baixa.
Entretanto, passaram-se 50 anos. Coimbra alargou-se ainda mais. As Faculdades deixaram de estar concentradas entre o Botânico e a Sé Velha, encontrando-se hoje os Pólos II e III situados em zonas que o Código da Praxe de 1957 classificava como Baixa... por não pertencerem à Alta.
Não admira, pois, que o conceito de Alta se tenha vindo a diluir, tal como referi no início. Era inevitável. A Alta, que resistiu à mutilação de que foi alvo nos anos 40 para que todas as Faculdades se concentrassem num único local da cidade, viria, ironicamente, a não resistir à criação das “novas Altas”, os novos Pólos Universitários, nascidos a partir das décadas de 70 e 80, por vias da explosão do ensino superior.
Mas é bom que a memória destas coisas não se esqueça, para que Coimbra não fique igual a tantas cidades que se sentem felizes com a sua Baixa porque nunca souberam o que era ter uma Alta.
Zé Veloso

12 julho 2010

SAIAM DOIS FINOS PRÀ MESA DO CANTO!

Numa época onde tudo tende a ser tão igual, é salutar que em Coimbra se peça um fino enquanto em Lisboa se pede uma imperial.
Praia do Pego, algures entre a Comporta e Melides. São sete da tarde, mas o sol ainda vai alto, reflectindo um brilho intenso, de fazer doer os olhos, sobre a mareta saltitante da baixa-mar. Descanso o olhar na serra da Arrábida, cujo perfil se recorta a azul cinzento no horizonte mais a norte, até encontrar o mar no Cabo Espichel. Uma ligeira bruma para sul não deixa ver o cabo de Sines, que apenas se adivinha, mas compõe o quadro deste calmo e morno fim de tarde no litoral alentejano.
Não apetece sair dali. Passo pelo bar da praia e abanco na esplanada, na tentativa de retardar o regresso. É tempo de beber uma cerveja. Lanço um olhar cúmplice para a minha mulher, fazemos uma aposta breve e atiro o pedido: – Dois finos, por favor! O rapaz hesita… vira-se para um outro em busca de apoio, conferencia-se rapidamente em português com sotaque brasileiro… e lá saem os dois finos… ainda que em copo de plástico. – Finíssimo!!!...
Quando vim trabalhar para Lisboa, já lá vão 40 anos, a palavra “fino” não constava do léxico da capital do Império, onde o termo “imperial” fazia jus ao estatuto da cidade. “Fino” era uma característica de Coimbra e, também, do Porto; e pedir um fino em voz alta correspondia à exibição pública de uma “certidão de proveniência” nortenha. Com o passar dos tempos, o “fino” chegou a todo o país. Mas não há dúvida de que ele continua agarrado a Coimbra, como esta semana bem pude provar com um breve inquérito no Facebook.
Porque será? Até hoje só encontrei uma referência para a origem da palavra “fino”. Foi no livro de memórias Boémia Coimbrã (dos anos 40), de A. Nicolau da Costa.
Mas para que não se vá com muita sede ao pote, ou melhor, ao fino, deixem-me dizer-vos que Nicolau da Costa, que foi responsável pelo jornal académico O Ponney – fundado em 1929 por outro boémio de nomeada, Castelão de Almeida – foi um dos grandes boémios da academia coimbrã de 40, boémios estes que se intitulavam a si próprios de "cow-boys" ou "cáboys", designação que deverá ter estado na origem da claque de futebol "Cow-boys", formada por Mário Cunha em 1936.
Nicolau da Costa conta-nos que era amigo de copos de um refinado boémio, de seu nome Toninho Saraiva, "Toninho Copi" para os amigos, tipo «sombra magrinha, bem penteadinha» que vagueava por Coimbra naquela época.
Pois bem, o Toninho Saraiva tinha-se curado duma tuberculose galopante em poucas semanas e atribuía a sua cura milagrosa à cerveja, da qual era apreciador esmerado, coisa que médicos amigos me disseram ser tão provável como as galinhas terem dentes. Mas para o “Toninho Copi” isso era uma verdade absoluta. Sigamos agora em directo o texto de A. Nicolau da Costa:
«...E talvez fosse por isso que religiosamente, diariamente, como quem se sacramenta, descia as escadas da "Domus", na Visconde da Luz, para se regalar, profilacticamente, com doses maciças daquele "medicamento". A essas formidáveis libações, chamava-lhe ele "Os banhos do Toni"... Entenda-se por "Toni" o único dente incisivo de que dispunha a sua devastada dentadura...
«Dessa convivência diária com a cerveja, resultou que o Toninho ficou perito. E ficas a partir de agora ciente de uma verdade incontroversa, caro leitor: Quando hoje te sentas a uma mesa e displicentemente, por hábito, pedes um "fino", estás, sem o saberes, a seguir as indicações técnicas do Toninho. Sim, senhor! A classificação de "fino" começou quando o Toninho exigia que lhe servissem em copo de vidro fino, como ele apreciava. Exigia-se de início: "Um copo de cerveja de vidro fino!". Depois pedia-se "Um copo fino". Hoje generaliza-se e pede-se "Um fino!".
Como diria o Peça: – E esta, hem?!!
Por isso, quando me serviram um fino numa delgada película transparente com a forma tronco-cónica a que dão o nome de “copo de plástico”, o meu comentário não poderia ter sido outro: – Finíssimo!!!
Zé Veloso
PS escrito em 31/08/2022:

Este post foi escrito em 12/07/2010
Em 23/07/2010 recebi na página do Facebook “Penedo d@ Saudade”  – página que hoje está inactiva, tendo dado lugar ao grupo “Penedo d@ Saudade - TERTÚLIA" – um comentário do filho do Toninho Saraiva, comentário que registei mais abaixo, mas que hoje decidi trazer para o corpo principal do post, dada a sua importância:

QUOTE

J Veloso
Confirmo a história do “Fino”.
Toninho Saraiva era meu pai, falecido em 1992.
Toninho iniciou as suas lides na Boémia Coimbrã aos 18 anos, por volta de 1945, fugindo do Caramulo onde fora internado por conselho de um especialista catalão com diagnóstico de tuberculose rara e fatal.
"Antes que o avô o reencaminhasse para o sanatório, refugiou-se numa república Coimbrã e passou a integrar a trupe do Felisberto Pica e outros boémios que quando pediam uma rodada de cerveja nas suas incursões à Baixa, a excepção era sempre a frase “mas para o Toninho num copo muito fino”, mais tarde o “Fino”.
Dizia-se então que o Toninho era faquir, pois não os bebia… engolia-os!
Fino era exclusivo de Coimbra até aos anos 70, no Norte era Príncipe, no Sul Imperial, e só em meados dos anos 80 se “nacionalizou” quando apareceu uma campanha com o claim – Sagres, o Fino!.
Continue a perpetuar as memórias de Coimbra!
Obrigado
José Mª Saraiva Marques

UNQUOTE

A imagem dos copos de cerveja foi descarregada do link:

http://www.google.pt/images?hl=pt-PT&num=10&as_epq=&as_oq=&as_eq=&lr=&cr=&as_ft=i&as_filetype=&as_qdr=all&as_occt=any&as_dt=i&as_sitesearch=&as_rights=&safe=images&q=copos+de+cerveja&um=1&ie=UTF-8&source=univ&ei=ZPg5TIrPHMKSjAfNoKjhAw&sa=X&oi=image_result_group&ct=title&resnum=4&ved=0CDUQsAQwAw