14 abril 2011

CAPA E BATINA. DA “LOBA” ECLESIÁSTICA À BATINA LAICA

    Na crónica anterior vimos que a capa e batina começou por ser um traje austero, que nasceu para evitar excessos e soberbas, num ambiente universitário com fortes ligações ao clero e numa Idade Média onde era usual que cada profissão ou condição social se distinguisse das restantes através da forma de trajar.
    Nos Séc. XVII e XVIII, a tónica eclesiástica do traje foi-se acentuando, sendo de realçar a utilização da "loba", espécie de batina ou sotaina eclesiástica sem mangas, guarnecida na frente com duas filas de botões desde o pescoço até abaixo do joelho.
    Apesar de Coimbra ser na altura uma cidade longe da capital, vivendo de e para uma Universidade conservadora e fechada à modernidade, o traje não deixou de ser permeável ao mudar dos tempos e às modas que vinham de fora. Reis Torgal escreve que menos modestos eram os trajes do séc. XIX, sobretudo depois do liberalismo; e o interessante blogue Porto Académico refere uma alternativa à “loba”, mais chique e mais cara, a “abatina”.  
    Como exemplo da degradação dos antigos costumes, atente-se na forma displicente como a outrora respeitosa capa começa a ser traçada! António Rodrigues Lopes acha que o traçar da capa foi primeiramente adoptado da moda afidalgada do Séc. XVII e se inspirou, mais tarde, no jeito como a tricana cruzava o xaile...
    O Séc. XIX – precursor da instauração da República – foi um século de transformações sociais e muito fervor anticlerical, pelo que o rigor do traje e a sua afinidade eclesiástica – “loba”, cabeção, volta,… – foram alvo de grande contestação e geradores de enormes tensões entre os estudantes e vários reitores. Expoente máximo desse confronto foi o odiado reitor Basílio que, em 1859 e segundo Sousa Lamy, ordenou aos estudantes que usassem a batina aberta por detrás, abotoada pelas costas e cosida adiante com uma ordem de pequenos botões de cima abaixo e determinou que os archeiros metessem na prisão os estudantes que andassem com a batina aberta e indecente.
    Mas “o que tem de ser tem muita força” e, já perto do rodar para o Séc. XX, foi permitido de jure o que a prática já vinha consagrando; e o traje académico atingiu uma forma semelhante à que tem hoje. Lendo Ramalho Ortigão (1988), fortemente crítico desta evolução, o cabeção e a volta foram substituídos pelo colarinho postiço e pela gravata do futriquismo liró. A batina degenerou num casaco gebo e mestiço, de padre à paisana. A calça escorreu inartística e besta, pela perna abaixo, esbeiçando apolainada sobre a odiosa bota de elásticos.
    Outra evolução interessante tem a ver com o gorro. Tendo começado por ser um barrete redondo, foi desaparecendo das cabeças – ainda que não do traje – provocando o espanto dos forasteiros que visitavam Coimbra nos sécs. XVIII e XIX, já que andar de cabeça descoberta era singular e esquisito naquela época. Aliás, o facto de andarem em cabelo só abona a favor do bom gosto dos académicos de então, pois que a alternativa era usar um enorme gorro que aparece descrito como sendo um saco preto, que posto na cabeça caía pelas costas e cujo tamanho se imagina quando se sabe que o mesmo servia igualmente para carregar livros, frutas e outros misteres.
    Só que as modas vão e voltam. E o gorro, que no meu tempo tinha caído em desuso, a ponto de não me recordar de ter visto algum nos 12 anos que andei por Coimbra, voltou recentemente a ver-se e, segundo me dizem, mais ainda nas raparigas.
    Vistas que estão as questões de evolução estética da capa e batina, passemos em revista as questões ligadas ao seu uso.
    Durante muito tempo o uso da capa e batina foi obrigatório para o estudante, tal como, aliás, para o lente, ainda que este usasse uma batina comprida até aos pés. Entre 1718 e 1834, esta obrigatoriedade estendia-se a toda a cidade. De 1834 até à implantação da República, em 1910, a capa e batina era apenas obrigatória dentro do perímetro da Universidade.
    O Marquês de Pombal quis acabar com este trajo aquando da reforma que fez da Universidade, em 1772. Deveria ser demasiado jesuítico para o seu gosto. Mas, de acordo com escritos da época, representou-se-lhe, porém, que a Universidade e o País tinham simpatia por aquele uniforme tradicional; que, além disso, para os pobres tinha a vantagem de ser mais barato, que estabelecia melhor semelhança entre estudantes, que lhe poupava inúteis despesas e os livrava de vaidosas ostentações de luxos.
    Havia, no entanto, outras vantagens nesta obrigatoriedade. Os estudantes e professores, como aliás os serventuários da universidade ou dos escolares, usufruíam no passado regalias diversas, das quais se destaca estarem sujeitos a foro e cadeias próprias. Já a Carta de D. Diniz, que estabelecia à época os privilégios da Universidade, proibia às justiças de Coimbra o trazerem violentamente os estudantes a juízo secular, salvo serem compreendidos em homicídio, ferimento, furto, roubo de mulheres ou crime de moeda falsa. Facilmente se percebe que, havendo que distinguir claramente entre dois tipos de cidadãos – os estudantes e os futricas – a existência de um uniforme para os primeiros facilitava as coisas.
    E esta questão deixou raízes tão fundas na sociedade Coimbrã, que seria impensável, no meu tempo, que um futrica se vestisse de estudante, mesmo que fosse apenas para mascarada de Carnaval. Aliás, futrica que usasse capa e batina ficava automaticamente sujeito a ser rapado sem mais contemplações. E cantor lisboeta que o fizesse para cantar um fado na televisão, melhor fora que não aparecesse em Coimbra e ficaria sempre a recear que, mesmo em Lisboa, uma bela noite lhe aparecesse pela frente uma trupe que lhe desse a volta ao penteado...
    E não perca o último episódio desta saga... a transmitir pela Páscoa. ALELUIA!!!

07 abril 2011

AS ORIGENS DA CAPA E BATINA

    Quando em 1537 a Universidade foi definitivamente reinstalada em Coimbra por D. João III, já a capa era utilizada pelos estudantes, aos quais os Estatutos Manuelinos ordenavam, num parágrafo dedicado à honestidade dos vestidos, que os escolares andem honestamente vestidos e calçados , isto é, não tragam pelotes, nem capuzes, nem barretes, nem gibões vermelhos nem amarelos nem verde-gaio, nem cintos lavrados de ouro.
     Na época, a capa fazia parte da indumentária corrente; e uma espécie de túnica preta era característica da indumentária dos eclesiásticos, muitos dos quais frequentavam a Universidade. Eis o embrião da capa e batina, tal como aparece retratada na gravura de Georgius Braunius.
    Como é visível, o traje era muito diferente do de hoje. Mas como as modas sempre existiram e as vestimentas sempre foram evoluindo ao seu sabor, também a capa e batina se foi adaptando ao corte dominante de cada época, embora mantendo sempre um ar austero, de inspiração eclesiástica, adequado ao estatuto social do estudante de então.
    Vogando um pouco ao sabor da tradição, a capa e batina nunca aparece perfeitamente definida, quer no que toca ao seu corte quer no que respeita à forma de ser usada. Contrariamente ao que acontece nos códigos da praxe dos Sécs. XX e XXI, os regulamentos de antanho dedicam-se muito mais a dizer o que não pode ser usado do que aquilo que o deve ser; e fazem-no sempre no sentido de evitar os excessos, a pompa e o gasto de despesas pelos estudantes que cursavam a Universidade.
    É assim que a Ordenança para os Estudantes da Universidade de Coimbra, de D. João III, determina que os académicos não possam trazer barras nem debruns de pano em vestido algum; vestido algum de pano frisado; barretes doutra feição senão redondos; capas algumas de capelo; golpes nem entretalhos nas calças; lavor branco, nem de cor alguma em camisas, nem lenços.
    Estas e outras restrições da mesma índole eram impostas no séc. XVI, altura em que se diz que Luís de Camões terá cursado em Coimbra. Conta-nos Alberto Sousa Lamy que Arnaldo Gama, no romance histórico A Caldeira de Pêro Botelho, referindo-se à indumentária de Luís de Camões, escreveu que ele vinha agora gravemente vestido de académico, com seu barrete redondo, o colar chão e sem nenhum daqueles feitios de rendas, bicos, trancinhas e outras guarnições, das que naquele tempo se usavam, e a aljubeta de pano liso e comprido tinha mais de três dedos abaixo dos joelhos.
    É interessante notar que a capa e batina que chegou aos nossos dias também é, de alguma forma, um traje austero. E que os "legisladores" dos Sécs. XX e XXI – os Conselhos de Veteranos – procuraram igualmente conter os luxos, arrebiques e exoterismos típicos da sua época. Veja-se que os Códigos da Praxe de 1957, 1993 e 2007 obrigam, entre muitas outras limitações, a que a camisa e a gravata sejam lisas, o colete seja não de abas ou cerimónia, e não se usem luvas nem pulseiras. E, no que às raparigas diz respeito, aqueles códigos não deixam também de limitar as suas vaidades: nos de 1957 e 1993 o fato saia-casaco deverá ser de modelo simples e sem gola de pele; no de 2007 as limitações são razoavelmente mais severas.
    Quanto à cor dos trajes, sempre há notícia de que tenha sido uma cor escura. Os denominados Estatutos Velhos – que vigoraram da ocupação espanhola à reforma pombalina e que continham uma lista infindável de limitações tendentes a evitar luxos e espaventos – prescreviam que os estudantes não trarão em nenhum vestido de sotaina, calças ou pelote, as cores aqui declaradas: amarelo, vermelho, encarnado, verde, laranjado, sob pena de perderem os ditos vestidos, a metade para a Capela e a outra para o meirinho, ou guarda das Escolas, qual o primeiro a acusar.
    Esta interessante paleta de cores era proscrita apenas para o que ficava à vista, já que, quanto à roupa de baixo, que os estudantes poderiam trazer para sua saúde, existia maior condescendência, desde que as cores ficasse bem cobertas. É curioso notar que os Código da Praxe de 1957, 1993 e 2007 acolhem estes mesmos princípios ao estabelecer, simplesmente, que a roupa interior e bolsos não estão sujeitos a revista.
    Voltando às cores proibidas pelos Estatutos Velhos, nunca apurei ao certo qual a diferença entre o vermelho e o encarnado mas fica clara a intenção de não utilizar cores garridas, incompatíveis com a austeridade pretendida para o traje e, como já me foi referido, de “tinturaria” mais cara. Fica igualmente claro que cores que encontramos hoje no hábito de algumas ordens religiosas, como o castanho escuro e o pardo, não estavam excluídas. Só não percebo a não proibição do azul… paciência!
    A cor que ganhou foi o preto… a capa e batina que chegou aos nossos dias é preta… e ainda bem, já que assim se chegou a um paradoxo interessante: É que o preto, aquela cor fúnebre e austera, símbolo da morte, do luto e da tristeza, tornou-se, paradoxalmente, por via da capa e batina, a cor da juventude, da alegria e da esperança!
    Não perca os próximos episódios (ver Nota)!