20 setembro 2012

CAMPO DO BOLÃO, QUEM TE PÔS O NOME?

    Há dias atrás, enquanto percorria o Facebook, dei com este postal antigo. Observado com cuidado, percebe-se que a vista não é do Campo do Bolão. Mas poderia muito bem ser, já que contém alguns traços que lhe são (eram) característicos: o extenso campo pronto a ser lavrado, a junta de bois que puxa a charrua, o homem que mantém o bico do arado bem fundo na terra, o miúdo a quem os bois seguem  não sei se por rotina se por respeito à enorme vara que leva ao ombro  e, lá longe, o recorte de Coimbra no horizonte. A vista corresponde a uma zona na margem esquerda do Mondego, a montante da Ponte de Santa Clara. Como disse, não é do Campo do Bolão mas poderia muito bem ser.


    Para quem não tenha passado por Coimbra ou se tenha já esquecido da sua geografia, o Campo do Bolão é uma planície absolutamente plana, com algumas centenas de hectares, entalada entre o chamado Rio Velho – leito natural do antigo Mondego – a Linha do Norte e a estrada que da Adémia vai até à Cidreira e à Geria. É um campo extremamente fértil, já que só depois das obras de regularização do Bazófias deixou de ser anualmente invadido pelas suas águas, às quais se juntavam igualmente as da Vala do Norte, vindas dos lados do Caramulo.

    A memória que dele tenho data dos anos 50, andava eu no liceu. Na época das aulas, morava em Coimbra com as minhas irmãs e o meu irmão. Ao final da tarde de sábado, regressávamos a Ançã para passar o domingo, fosse na carrinha Peugeot 203 de 3 bancos conduzida pelo meu Pai, fosse na camioneta da carreira José Maria dos Santos & Cª Lda. E o Campo do Bolão ficava, invariavelmente, no nosso caminho.

    Em época de cheias, quando a água do Rio Velho invadia o campo, “ia-se à volta”, pela Adémia, que era, aliás, o trajecto regular da carreira. Nessas semanas, o campo transformava-se num lago e Ançã ficava mais longe de Coimbra.

    Passadas as chuvas, abria aos automóveis a estrada entre a Estação Velha e a Cidreira, onde uma velha ponte de madeira, que não permitia o cruzamento de dois carros, desembocava numa apertada curva. Nesse pequeno troço, olhávamos para o campo de soslaio, já que a estreiteza do traçado não permitiam despregar os olhos dos muros que ladeavam a estrada ou de algum carro que viesse em sentido contrário, como se fôssemos nós a conduzir o automóvel. Mas, no troço entre a ponte da Cidreira e a Estação Velha, a vista do campo estendia-se até aos choupos que ladeavam a recta da Adémia e era o tempo de observar a intensa faina agrícola que ali se desenvolvia.

    No campo havia centenas de pequenas leiras individuais, tomadas de renda para sustento de economias familiares, que se distinguiam umas das outras pelo avanço dos trabalhos agrícolas, que conferiam matizes diferentes às cores do terreno. E, enquanto avançávamos lentamente naquelas estreitas estradas, era possível contar o número de juntas de bois – idênticas às do postal – que se espalhavam pelo campo, leira a leira, na corrida contra o tempo que antecede as sementeiras. E com frequência esse número ultrapassava a centena, o que parece hoje inacreditável.

    Mas de quem era, então, esse imenso campo que contava com centenas de rendeiros? Nessa altura seria já de mais de um dono, mas no passado não fora assim.

    Contava o meu Pai que o campo fora em tempos de um só senhor, o qual, não tendo herdeiros, o deixou por herança a um afilhado. Como é sabido, as prendas que era uso dar pela Páscoa aos afilhados de baptismo chamavam-se "folar", sendo que, na região entre Ançã e Coimbra, o folar é um bolo que lembra o bolo de Ançã e tem um ou mais ovos cozidos em cima. Ao pé destes folares tradicionais, que não são mais do que um simples bolo, bem pode dizer-se que a prenda que o dono daquele campo todo deu ao afilhado era … um "bolão"!

    E meu Pai rematava a história dizendo que aí residia a origem de tão singular nome – Campo do Bolão.

    Como aos 12 anos não desconfiamos daquilo que nos contam, nunca perguntei ao meu Pai se a história era verdadeira ou se era lenda.

    Hoje, já mais velhinho, tentei procurar na “net” alguma dica que me reconfortasse acerca da veracidade da história. Nada encontrei. Mas, curiosamente, apareceu-me um documento do Arquivo da Universidade de Coimbra, onde se inventariam os bens do antigo Colégio de S. Bernardo, também conhecido por Colégio do Espírito Santo, o qual, tendo sido fundado em 1550, foi dotado com as rendas do Mosteiro de S. Paulo de Frades (que anexou). E, por essa via, aparecem várias referências a um campo (campos ou herdades) do Bolão, nomeadamente a «12 jeiras no campo do Bolão, em Vila Franca, termo de Montemor-o-Velho» (será, por certo, Vila Franca, lugar da freguesia de Arazede, concelho de Montemor-o-Velho), e a uma «Carta de venda que fez Pedro de Bolão a Fernão Pires chantre de Lisboa e fundador do mosteiro de S. Paulo de hua herdade no Bolão na Era de 1258». O que mostra que a palavra “Bolão” já no século XIII servia para nomear um campo agrícola, sendo também utilizada como sobrenome.

    Terá o campo do Bolão de Montemor-o-Velho alguma coisa a ver com o de Coimbra, apesar de se tratar de terrenos distantes um do outro? Teria a herdade no Bolão (Montemor-o-Velho) esse nome por ter pertencido a Pedro de Bolão ou tratar-se-ia exactamente do contrário? Teria o Campo do Bolão (Coimbra) pertencido a alguém de apelido Bolão? Será que a palavra “bolão” significava, em tempos idos, algo que era aplicável tanto ao campo de Coimbra como ao de Montemor-o-Velho? Será que nada disto é válido e existe algures uma teoria consistente?

    Ou será que eu sou um racionalista inveterado e só estou a arranjar argumentos para pôr em dúvida uma curiosa e bonita história que, um belo dia, um pai contou aos seus filhos, enquanto circulavam de automóvel entre Coimbra e Ançã?

    Zé Veloso

P. S.

«Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades…»
A Briosa deixou de treinar no Campo de Santa Cruz, para treinar no Campo do Bolão.
E o campo, que era rico na produção de milho, passou também a produzir golos!
No dia em que a Briosa volta comparecer, 41 anos depois, numa competição europeia, faço votos para que volte da República Checa trazendo na bagagem um bolão (uma vitória) ou, pelo menos, um bolinho (um empate)!
ZV

03 setembro 2012

URINÓIS DE COIMBRA


    A crónica de hoje tem a ver com um assunto sensível. Trata-se de uma matéria politicamente incorrecta, cuja abordagem nesta altura poderá ser, quiçá, pouco patriótica. Estamos em plena visita de avaliação dos da troika – que tudo irão vasculhar nas próximas semanas – e receio bem que, quando chegar a altura de lerem esta crónica, não levem a sério um país onde todos deveríamos estar cabisbaixos e agradecidos em vez de andar por aí a escrever sobre temas fracturantes, cujo odor lhes possa fazer chegar a mostarda ao nariz.

    Mas há obrigações que não se podem adiar. E é já tempo de não deixar cair no esquecimento essas relíquias que ainda havia na Coimbra do meu tempo – os urinóis de ferro – espécie de biombos curvilíneos em cujo labirinto, em forma de caracol, se entrava aflito e se saía aliviado, e onde ninguém tinha de bater à porta pois que logo de fora se percebia se era a altura própria para entrar, já que a sábia arquitectura dos ditos biombos deixava à vista a canela dos utentes, por cujos movimentos ou quietude se avaliava o tempo sobrante para o despacho.
    Aqui deixo hoje exarada, até que o Google me apague o blogue, a minha singela e grata homenagem a esses desaparecidos espécimes de mobiliário urbano, que bem falta nos fazem em época de crise, já que, em relação aos de hoje, tinham a vantagem de ser grátis, poupando-se o consumo duma bica ou duma água sem gás, pois que é feio entrar e sair num estabelecimento sem fazer despesa. Claro está que estas considerações se não aplicam às senhoras, as quais poderiam sempre continuar a ir aos cafés e restaurantes e assim haveria alguém para pagar o IVA a 23% na restauração, o que deixaria a troika e o governo mais tranquilos e contribuiria para a redução do défice.

    A provar que os urinóis são um assunto é sério, que eu não vim para aqui fazer baderna e que não me movem sentimentos antipatrióticos, veja-se o que aparece escrito no livro SANTA CRUZ: UM CAFÉ COM HISTÓRIA (1). Aí se conta: Nos anos de 1940 existia um urinol junto ao Café. O cheiro por vezes tornava-se desagradável no seu interior, de tal forma que o empregado Coutinho exerceu com veemência a influência que detinha na Câmara Municipal, e conseguiu que o mesmo fosse retirado do local. Havia, no entanto, de cumprir uma cláusula por parte do Café – o reconhecimento de que todo o cidadão de Coimbra podia utilizar as suas casas de banho. E assim se fez. E tudo foi exarado em acta camarária. A partir daí, os detractores do café, principalmente os estudantes, começaram a designá-lo por “urinol público” ou “café de merda”.

    Pena tenho eu de, no meu tempo de Coimbra, não ter sido informado de tais obrigações que o Café de Santa Cruz contraiu para com a cidade, de papel passado e tudo. Ter-me ia poupado o custo de algumas bicas ou uma subida em passo apertado para tomar um banho junto à praça. É que, nas traseiras do Mercado D. Pedro V, de frente para os antigos correios, à esquerda de quem saía da praça e logo a seguir a um quiosque de jornais, estava um dos tais urinóis de ferro. Mas a corrosão atingira já as canalizações da água de aspersão, de tal forma que quem entrava para as verter se arriscava a sair de lá salpicado da cabeça aos pés. Era um urinol para os dias quentes! O meu irmão contou-me que, no seu interior, alguém bem-disposto escrevera a seguinte quadra:

            Isto não é um urinol
            É uma coisa indecente
            Vem a gente mijar nele
            E é ele quem mija na gente


    Pobre urinol da praça... não te deram concerto, tiraram-te lá do canto e, agora, os que por lá passam fazem o mesmo que faziam dantes mas vê-se-lhes o corpo todo e ainda têm de o fazer ao relento!

    Mas o mais afamado, aquele que, estou certo, resolveu as aflições de meia Coimbra, a meia Coimbra que usava calças, situava-se ao cimo da Sá da Bandeira. Prantado junto à Praça da República, estava bem enquadrado na paisagem, adornado pela casota dos cisnes e meio disfarçado pelo quiosque dos jornais (só ainda não entendi esta atracção entre os urinóis e os jornais. Adiante…).
    Um grande favor lhe fiquei a dever: um belo dia em que por ali rondava uma trupe, era eu ainda bicho ou caloiro, logrei fintá-la entrando no “labirinto”, onde, contendo a respiração, fui controlando os movimentos do inimigo através do rendilhado dos painéis de ferro meio apodrecidos, escudado no facto de a condição de futrica ou de estudante não ser facilmente avaliável pela barriga da perna. O que mostra que nem sempre a corrosão é uma desvantagem...

    Nascidos em França, julga-se que no século XIX, não sei em que data chegaram a Coimbra, onde, praticamente, não deixaram registo de imagem, talvez por pudor dos retratistas. Mas existiam ainda na década de 60, sendo que pelos anos 70 terão ido para a sucata, como normalmente acontece num país de sucateiros.

    Ao invés, em cidades europeias de países que presam o seu património, é possível ver, ainda hoje, em jardins e outros espaços públicos, devidamente conservados, alguns exemplares de ferro fundido que são verdadeiras obras de arte. Assim se pode comparar o ontem e o hoje. Assim se mostra aos mais novos que o conforto e a higiene de que hoje gozamos não nasceram de geração espontânea.

    Procurei, com afinco, uma fotografia dos urinóis de Coimbra, em pose institucional, que pudesse ilustrar esta crónica. Gostaria de os ver retratados na flor da idade, enquanto jovens bem-parecidos e não com o ar decrépito que lhes conheci. Mas nada. Apenas encontrei no livro COIMBRA. IMAGENS DO PASSADO (2) , uma foto de 1953, tirada a partir da Estação Nova, onde apenas é visível a cúpula de um deles, envergonhadamente escondido atrás de um parque de camionetas de carreia, onde hoje está um quiosque de jornais (tinha que ser!...)

    Estive quase para não a colocar aqui. Um urinol só faz sentido… em sentido… e de corpo inteiro!

    Zé Veloso

    PS: Já depois de terminada e publicada a crónica, soube que em Lisboa ainda há urinóis de ferro a funcionar, nomeadamente no Castelo de S. Jorge.

(1) SANTA CRUZ: UM CAFÉ COM HISTÓRIA, António Inácio Correia Nogueira, Câmara Municipal de Coimbra, 2007, pág. 106.
(2) COIMBRA. IMAGENS DO PASSADO. 1940-1960, Mário Nunes, Livraria Minerva1990, pág121.