No meu tempo de Coimbra a Sebenta estava no auge. Rara
era a cadeira que a não tinha, raros eram também os livros que consultávamos. E
os sebenteiros tomavam assento na primeira fila das teóricas, munidos do último
grito das novas tecnologias – um gravador de fita que ocupava todo o tampo da carteira!
As sebentas no prelo iam saindo em fascículos à medida que as aulas avançavam, editadas
a mais das vezes pela Almedina, onde se vendiam também as sebentas de anos
anteriores já devidamente encadernadas. Quanto às sebentas em segunda ou
terceira mão, o seu valor dependia da quantidade e suposta qualidade dos
apontamentos à margem, podendo a ex-sebenta de um urso ser transaccionada por
valor superior ao de uma sebenta nova.
Poucas sebentas de Coimbra terei guardado comigo, pois cedo concluí que,
enquanto futuro engenheiro, jamais voltaria a demonstrar o Teorema de Bolzano-Weierstrass ou a escrever aquelas Fórmulas de Poiseuille que ocupavam de ponta a ponta os
dois quadros do anfiteatro das Físicas. Chegado ao Porto, a instituição Sebenta
lá continuava imperturbável, escrita por sebenteiros ou pela mão dos próprios
mestres. Mas era chique dizer que se estudava por reputados livros de
Engenharia, o que só em parte era verdade. E pairava no ar a ideia de que a
instituição teria os dias contados. Mas seria assim?
A verdade é que, passados mais de 40 anos sobre a minha formatura, a Sebenta
continua vivinha da costa, não apenas em Coimbra mas também noutras universidades [1],
elaborada por alunos ou por professores ou pelos primeiros com revisão dos segundos, policopiada ou – sinal dos tempos –
distribuída online! O suporte tem vindo a mudar, podendo até os textos
aparecer travestidos de apresentações powerpoint. Mas o conteúdo continua a
ser o mesmo – os apontamentos da aula – e continua a chamar-se Sebenta!
Diz o povo que "nem rei nem papa à morte escapa". Mas a sebenta dá mostras de não
querer morrer, apesar da má reputação pedagógica que muitos lhe atribuem e de outros tantos a terem já sentenciado de morte.
Os seus defensores apontam-lhe a virtude de ela constituir uma ferramenta fácil
de utilizar pelos alunos, já que procura reproduzir fielmente o conteúdo das
aulas. Os seus detractores vêm, nessa mesma virtude, o seu grande pecado – limitação
do universo de consulta por parte dos alunos, cristalização da ideia de que existe
uma só verdade, a que sai da boca do mestre.
Escreve Manuel Alberto Carvalho Prata [2] que a sebenta remontará à criação das
próprias universidades, tendo como antecedentes as postillas ou apostillas,
apontamentos tirados nas aulas pelos alunos, numa época em que raros eram os livros
disponíveis e cabia aos lentes fazer para os alunos a leitura de alguns que
houvesse; que o uso das postillas foi encorajado até à reforma pombalina da Universidade
de Coimbra (1772), reforma que impôs aos lentes a escrita dos compêndios e
proibiu o uso das postillas, «para não se consumir prejudicialmente em tão
prolixas escrituras o tempo, que mais útil, e suavemente se deve empregar na
explicação das lições» [3]; e que tal imposição não foi cumprida, apesar de
vários avisos régios, o que levou o Principal da Universidade a determinar em
1786 «que de agora e para sempre se desterre e proscreva desta Universidade o
pernicioso costume de escrever nas aulas» [4], determinação essa que era
acompanhada de severas sanções para os prevaricadores.
Mas, chegados ao início do Século XIX e estando já inventado o processo litográfico de
reprodução de textos, as postillas, que embora proibidas nunca tinham sido banidas,
encontraram o seu processo natural de reprodução, dando lugar à Sebenta.
E
Trindade Coelho, que entrou para Direito em 1880, publica em 1902 o seu In
Illo Tempore, onde evoca a Sebenta em termos que permitem supor que a mesma
pudesse ter já entrado em declínio no início do século XX. Puro engano!… Durou,
pelo menos, mais 110 anos! E sabe-se lá quando acabará!...
Sigamos, então, Trindade Coelho, num texto que sempre me provoca o riso de cada vez
que o leio:
«No tempo em que eu andava em Coimbra, ainda a boa e imortal
sebenta reinava em todo o seu esplendor! Eu nem fazia sequer ideia, ao chegar a
Coimbra, do que vinha a ser isso da sebenta; mas, industriado logo a tal respeito,
vim a saber que era uma espécie de folhinha litografada, formato 8.º, que saía
todos os dias compendiando a explicação do lente; que se chamava “sebenteiro”
ao que a redigia; que custava sete tostões por mês cada uma; que eram três em
cada ano, visto as cadeiras em cada ano serem três; e, finalmente, que,
enquanto o lente explicava a lição para o dia seguinte, só o sebenteiro ouvia o
lente, e que os mais, todos, e eu portanto, podiam muito bem ler o seu romance,
fazer o seu bilhetinho e passá-lo ou comentar os que vinham dos outros – ou
então, se preferíssemos, dormir ou fazer versos!
Não havia nada de melhor! Além disso, algumas metiam também as suas piadas; outras davam caricaturas – e sebenteiro havia que amenizava por tal forma aquela estopada, que até dava versos para o fado no fim de semana, e convocava os discípulos, em anúncios, para trupes aos caloiros, ou outras pândegas!
As sebentas tinham em geral oito páginas, e cada um ia pelas suas ao cair da noite, e eram duas por noite; mas, se o lente se tinha alargado na prelecção, ou o sebenteiro era maçador, às tais oito páginas acresciam outras – e a esse suplemento, que era sempre amaldiçoado, chamava-se o “resto”!»
Não havia nada de melhor! Além disso, algumas metiam também as suas piadas; outras davam caricaturas – e sebenteiro havia que amenizava por tal forma aquela estopada, que até dava versos para o fado no fim de semana, e convocava os discípulos, em anúncios, para trupes aos caloiros, ou outras pândegas!
As sebentas tinham em geral oito páginas, e cada um ia pelas suas ao cair da noite, e eram duas por noite; mas, se o lente se tinha alargado na prelecção, ou o sebenteiro era maçador, às tais oito páginas acresciam outras – e a esse suplemento, que era sempre amaldiçoado, chamava-se o “resto”!»
E, mais à frente,
«Está pois a ver-se que a Sebenta era uma instituição universitária; mas ainda assim, coisa curiosa, cheirava sempre a contrabando.»
Apesar de não se conhecer a data do seu nascimento, os estudantes de 1899
decidiram celebrar-lhe o “Centenário” com uma festa de arromba, que incluiu o
maior cortejo académico até então ocorrido em Coimbra, razão pela qual tais
festejos têm sido erradamente apontados como os precursores da Queima das
Fitas.
Desse tempo, está muito divulgada a figura da Maria Marrafa que, ao cair da noite, calcorreava a Alta, distribuindo os fascículos da sebenta casa a casa.
Conta-se que não distribuía apenas a sebenta e que, de quando em vez, à mistura
com a sebenta, ia deixando também as suas carícias. E até empréstimos em
dinheiro para algum estudante em aperto.
Outra figura típica de então era o litógrafo Manuel das Barbas. Só há alguns
dias lhe consegui ver a cara, que aqui deixo igualmente registada. Como a foto parece indiciar, deveria transpirar cebo por todo o lado, dado que o sebo
era o lubrificante utilizado no processo litográfico, sendo essa uma das razões aventadas para a origem do nome "sebenta" [5]. O Fado da Sebenta, com letra de
Afonso Lopes Vieira, fez-lhe a maldade de lhe escrever antecipadamente o
epitáfio para a sepultura:
«Aqui jaz Manoel das Barbas;
Trabalhou muito, e bebeu…
Lithographava sebentas,
Mas foi feliz : - nunca as leu.»
Lithographava sebentas,
Mas foi feliz : - nunca as leu.»
Termino esta crónica com uma história muito bem contada por Camilo de Araújo
Correia [6], história que não resisto a transcrever na íntegra, a qual envolve
o sebenteiro Júlio Condorcet, de seu verdadeiro nome Júlio Pais Mamede, médico
radiologista, que nas suas actividades de exímio prestidigitador se apresentava
como Conde d'Orcet, the King of Embarrilation.
«Condorcet foi um aluno de medicina com tanto de estudioso como de pândego. Não
sei se por necessidade, se para arranjar mais uns cobres para a estroinice, foi
também sebenteiro. Noites e noites a passar à máquina os apontamentos colhidos
nas aulas, ditados por um condiscípulo, seu colaborador na preparação das
sebentas.
Certa noite, a certa altura, saiu esta frase dos apontamentos:
– …”diz a mitologia que foram uns corvos que tiraram aos deuses o poder de curar e o deram aos homens”…
– Alto aí! – cortou o Condorcet
– Que é?!
– Como se chamam esses corvos?
– Sei lá! Aqui não está nome nenhum…
– Mas devia estar! Uns corvos dessa importância não podem deixar de ter nome, caramba!... Ora deixa cá ver… deixa cá ver… Que dizes a “Giribites”?
– Põe lá o nome que quiseres mas olha que pode dar mau resultado! – cortou o companheiro, morto por andar para a frente com os apontamentos.
Não deu mau resultado. O que deu foi um gozo medonho nos exames de “História da Medicina” desse ano.
Na primeira referência de um examinando aos “corvos Giribites” o lente deu um salto na cadeira e perguntou fora de si:
– Corvos quê?!!
– Giribites… – respondeu, a medo, o aluno?
– Giribites?!?!... Onde é que o senhor aprendeu isso?
Como, nesse tempo, os lentes não podiam ouvir falar em “sebentas”, o rapaz foi-se defendendo com a mentirazinha do costume.
– Foi num livro que me emprestaram… já bastante antigo…
– Hum… bem… bem…
Assim desarmado, o mestre continuou o exame sem mais incidentes. Incidentes houve, depois, com os alunos que não sabiam dizer o nome dos corvos!!!
– … foram uns corvos da mitologia… Ia dizendo o aluno.
– Como se chamavam esses corvos? Perguntava o mestre, atento à lengalenga.
– …… – Emudeciam os ignorantes.
– Giribites, senhor!... Giribites!... Vocês não estudam nada!... É tudo pela rama… tudo pela rama!...»
Certa noite, a certa altura, saiu esta frase dos apontamentos:
– …”diz a mitologia que foram uns corvos que tiraram aos deuses o poder de curar e o deram aos homens”…
– Alto aí! – cortou o Condorcet
– Que é?!
– Como se chamam esses corvos?
– Sei lá! Aqui não está nome nenhum…
– Mas devia estar! Uns corvos dessa importância não podem deixar de ter nome, caramba!... Ora deixa cá ver… deixa cá ver… Que dizes a “Giribites”?
– Põe lá o nome que quiseres mas olha que pode dar mau resultado! – cortou o companheiro, morto por andar para a frente com os apontamentos.
Não deu mau resultado. O que deu foi um gozo medonho nos exames de “História da Medicina” desse ano.
Na primeira referência de um examinando aos “corvos Giribites” o lente deu um salto na cadeira e perguntou fora de si:
– Corvos quê?!!
– Giribites… – respondeu, a medo, o aluno?
– Giribites?!?!... Onde é que o senhor aprendeu isso?
Como, nesse tempo, os lentes não podiam ouvir falar em “sebentas”, o rapaz foi-se defendendo com a mentirazinha do costume.
– Foi num livro que me emprestaram… já bastante antigo…
– Hum… bem… bem…
Assim desarmado, o mestre continuou o exame sem mais incidentes. Incidentes houve, depois, com os alunos que não sabiam dizer o nome dos corvos!!!
– … foram uns corvos da mitologia… Ia dizendo o aluno.
– Como se chamavam esses corvos? Perguntava o mestre, atento à lengalenga.
– …… – Emudeciam os ignorantes.
– Giribites, senhor!... Giribites!... Vocês não estudam nada!... É tudo pela rama… tudo pela rama!...»
Sabe-se que, neste caso, a marosca foi descoberta e os “corvos Giribites” não
voaram por muito tempo. Mas quantos outros “corvos Giribites” [7] não terão passado
já a verdades científicas irrecusáveis?
Zé Veloso
[1] Tendo questionado diversos alunos das universidades de Coimbra, Porto e Lisboa, apercebi-me de que a Sebenta ainda se mantém bastante activa nos dias de hoje, dependendo dos cursos e das Faculdades.
[2] Manuel Alberto Carvalho Prata, “Academia de Coimbra – (1880-1926) – Contributo para a sua História”, Imprensa da UC, 2002
[3] “Estatutos da Universidade de Coimbra”, 1772
[4] Teófilo Braga, “História da Universidade de Coimbra”, Tomo III, 1898
[5] Outras razões aventadas têm a ver com a fraca qualidade do papel, gorduroso, e com a sujidade de gordura acumulada nas páginas, depois de muito manuseadas.
[6] Camilo de Araújo Correia, “Coimbra Minha”, Almedina, 1989
[7] Fernando Rolin disse-me um dia que o nome dos corvos seria "Giribitsman" e não "Giribites".
Fotografias:
- Sebentas de Direito Civil e Direito Penal (manuscritas e litografadas): Foto do autor obtida no Museu Académico da Universidade de Coimbra.
- Maria Marrafa: Foto obtida da internet.
- Manuel das Barbas: Foto obtida de uma versão digital do livro "Typos de Coimbra" de Mário Monteiro, Livraria Editora Guimarães, 1908.
- Fado da Sebenta: Foto (do autor) de um original do folheto com a música e letra do Fado e do Hino da Sebenta.