05 novembro 2012

A SEBENTA – UMA INSTITUIÇÃO COM SETE VIDAS!...


No meu tempo de Coimbra a Sebenta estava no auge. Rara era a cadeira que a não tinha, raros eram também os livros que consultávamos. E os sebenteiros tomavam assento na primeira fila das teóricas, munidos do último grito das novas tecnologias – um gravador de fita que ocupava todo o tampo da carteira!
As sebentas no prelo iam saindo em fascículos à medida que as aulas avançavam, editadas a mais das vezes pela Almedina, onde se vendiam também as sebentas de anos anteriores já devidamente encadernadas. Quanto às sebentas em segunda ou terceira mão, o seu valor dependia da quantidade e suposta qualidade dos apontamentos à margem, podendo a ex-sebenta de um urso ser transaccionada por valor superior ao de uma sebenta nova.
Poucas sebentas de Coimbra terei guardado comigo, pois cedo concluí que, enquanto futuro engenheiro, jamais voltaria a demonstrar o Teorema de Bolzano-Weierstrass ou a escrever aquelas Fórmulas de Poiseuille que ocupavam de ponta a ponta os dois quadros do anfiteatro das Físicas. Chegado ao Porto, a instituição Sebenta lá continuava imperturbável, escrita por sebenteiros ou pela mão dos próprios mestres. Mas era chique dizer que se estudava por reputados livros de Engenharia, o que só em parte era verdade. E pairava no ar a ideia de que a instituição teria os dias contados. Mas seria assim?
A verdade é que, passados mais de 40 anos sobre a minha formatura, a Sebenta continua vivinha da costa, não apenas em Coimbra mas também noutras universidades [1], elaborada por alunos ou por professores ou pelos primeiros com revisão dos segundos, policopiada ou – sinal dos tempos – distribuída online! O suporte tem vindo a mudar, podendo até os textos aparecer travestidos de apresentações powerpoint. Mas o conteúdo continua a ser o mesmo – os apontamentos da aula – e continua a chamar-se Sebenta!
Diz o povo que "nem rei nem papa à morte escapa". Mas a sebenta dá mostras de não querer morrer, apesar da má reputação pedagógica que muitos lhe atribuem e de outros tantos a terem já sentenciado de morte.
Os seus defensores apontam-lhe a virtude de ela constituir uma ferramenta fácil de utilizar pelos alunos, já que procura reproduzir fielmente o conteúdo das aulas. Os seus detractores vêm, nessa mesma virtude, o seu grande pecado – limitação do universo de consulta por parte dos alunos, cristalização da ideia de que existe uma só verdade, a que sai da boca do mestre.
Escreve Manuel Alberto Carvalho Prata [2] que a sebenta remontará à criação das próprias universidades, tendo como antecedentes as postillas ou apostillas, apontamentos tirados nas aulas pelos alunos, numa época em que raros eram os livros disponíveis e cabia aos lentes fazer para os alunos a leitura de alguns que houvesse; que o uso das postillas foi encorajado até à reforma pombalina da Universidade de Coimbra (1772), reforma que impôs aos lentes a escrita dos compêndios e proibiu o uso das postillas, «para não se consumir prejudicialmente em tão prolixas escrituras o tempo, que mais útil, e suavemente se deve empregar na explicação das lições» [3]; e que tal imposição não foi cumprida, apesar de vários avisos régios, o que levou o Principal da Universidade a determinar em 1786 «que de agora e para sempre se desterre e proscreva desta Universidade o pernicioso costume de escrever nas aulas» [4], determinação essa que era acompanhada de severas sanções para os prevaricadores.
Mas, chegados ao início do Século XIX e estando já inventado o processo litográfico de reprodução de textos, as postillas, que embora proibidas nunca tinham sido banidas, encontraram o seu processo natural de reprodução, dando lugar à Sebenta.
E Trindade Coelho, que entrou para Direito em 1880, publica em 1902 o seu In Illo Tempore, onde evoca a Sebenta em termos que permitem supor que a mesma pudesse ter já entrado em declínio no início do século XX. Puro engano!… Durou, pelo menos, mais 110 anos! E sabe-se lá quando acabará!...
Sigamos, então, Trindade Coelho, num texto que sempre me provoca o riso de cada vez que o leio:
«No tempo em que eu andava em Coimbra, ainda a boa e imortal sebenta reinava em todo o seu esplendor! Eu nem fazia sequer ideia, ao chegar a Coimbra, do que vinha a ser isso da sebenta; mas, industriado logo a tal respeito, vim a saber que era uma espécie de folhinha litografada, formato 8.º, que saía todos os dias compendiando a explicação do lente; que se chamava “sebenteiro” ao que a redigia; que custava sete tostões por mês cada uma; que eram três em cada ano, visto as cadeiras em cada ano serem três; e, finalmente, que, enquanto o lente explicava a lição para o dia seguinte, só o sebenteiro ouvia o lente, e que os mais, todos, e eu portanto, podiam muito bem ler o seu romance, fazer o seu bilhetinho e passá-lo ou comentar os que vinham dos outros – ou então, se preferíssemos, dormir ou fazer versos!
Não havia nada de melhor! Além disso, algumas metiam também as suas piadas; outras davam caricaturas – e sebenteiro havia que amenizava por tal forma aquela estopada, que até dava versos para o fado no fim de semana, e convocava os discípulos, em anúncios, para trupes aos caloiros, ou outras pândegas!
As sebentas tinham em geral oito páginas, e cada um ia pelas suas ao cair da noite, e eram duas por noite; mas, se o lente se tinha alargado na prelecção, ou o sebenteiro era maçador, às tais oito páginas acresciam outras – e a esse suplemento, que era sempre amaldiçoado, chamava-se o “resto”!»
E, mais à frente,
«Está pois a ver-se que a Sebenta era uma instituição universitária; mas ainda assim, coisa curiosa, cheirava sempre a contrabando.»
Apesar de não se conhecer a data do seu nascimento, os estudantes de 1899 decidiram celebrar-lhe o “Centenário” com uma festa de arromba, que incluiu o maior cortejo académico até então ocorrido em Coimbra, razão pela qual tais festejos têm sido erradamente apontados como os precursores da Queima das Fitas.
Desse tempo, está muito divulgada a figura da Maria Marrafa que, ao cair da noite, calcorreava a Alta, distribuindo os fascículos da sebenta casa a casa. Conta-se que não distribuía apenas a sebenta e que, de quando em vez, à mistura com a sebenta, ia deixando também as suas carícias. E até empréstimos em dinheiro para algum estudante em aperto.
Outra figura típica de então era o litógrafo Manuel das Barbas. Só há alguns dias lhe consegui ver a cara, que aqui deixo igualmente registada. Como a foto parece indiciar, deveria transpirar cebo por todo o lado, dado que o sebo era o lubrificante utilizado no processo litográfico, sendo essa uma das razões aventadas para a origem do nome "sebenta" [5]. O Fado da Sebenta, com letra de Afonso Lopes Vieira, fez-lhe a maldade de lhe escrever antecipadamente o epitáfio para a sepultura:
«Aqui jaz Manoel das Barbas;
Trabalhou muito, e bebeu…
Lithographava sebentas,
Mas foi feliz : - nunca as leu.»
Termino esta crónica com uma história muito bem contada por Camilo de Araújo Correia [6], história que não resisto a transcrever na íntegra, a qual envolve o sebenteiro Júlio Condorcet, de seu verdadeiro nome Júlio Pais Mamede, médico radiologista, que nas suas actividades de exímio prestidigitador se apresentava como Conde d'Orcet, the King of Embarrilation.
«Condorcet foi um aluno de medicina com tanto de estudioso como de pândego. Não sei se por necessidade, se para arranjar mais uns cobres para a estroinice, foi também sebenteiro. Noites e noites a passar à máquina os apontamentos colhidos nas aulas, ditados por um condiscípulo, seu colaborador na preparação das sebentas.
Certa noite, a certa altura, saiu esta frase dos apontamentos:
– …”diz a mitologia que foram uns corvos que tiraram aos deuses o poder de curar e o deram aos homens”…
– Alto aí! – cortou o Condorcet
– Que é?!
– Como se chamam esses corvos?
– Sei lá! Aqui não está nome nenhum…
– Mas devia estar! Uns corvos dessa importância não podem deixar de ter nome, caramba!... Ora deixa cá ver… deixa cá ver… Que dizes a “Giribites”?
– Põe lá o nome que quiseres mas olha que pode dar mau resultado! – cortou o companheiro, morto por andar para a frente com os apontamentos.
Não deu mau resultado. O que deu foi um gozo medonho nos exames de “História da Medicina” desse ano.
Na primeira referência de um examinando aos “corvos Giribites” o lente deu um salto na cadeira e perguntou fora de si:
– Corvos quê?!!
– Giribites… – respondeu, a medo, o aluno?
– Giribites?!?!... Onde é que o senhor aprendeu isso?
Como, nesse tempo, os lentes não podiam ouvir falar em “sebentas”, o rapaz foi-se defendendo com a mentirazinha do costume.
– Foi num livro que me emprestaram… já bastante antigo…
– Hum… bem… bem…
Assim desarmado, o mestre continuou o exame sem mais incidentes. Incidentes houve, depois, com os alunos que não sabiam dizer o nome dos corvos!!!
– … foram uns corvos da mitologia… Ia dizendo o aluno.
– Como se chamavam esses corvos? Perguntava o mestre, atento à lengalenga.
– …… – Emudeciam os ignorantes.
– Giribites, senhor!... Giribites!... Vocês não estudam nada!... É tudo pela rama… tudo pela rama!...»
Sabe-se que, neste caso, a marosca foi descoberta e os “corvos Giribites” não voaram por muito tempo. Mas quantos outros “corvos Giribites” [7] não terão passado já a verdades científicas irrecusáveis?
Zé Veloso

[1] Tendo questionado diversos alunos das universidades de Coimbra, Porto e Lisboa, apercebi-me de que a Sebenta ainda se mantém bastante activa nos dias de hoje, dependendo dos cursos e das Faculdades.
[2] Manuel Alberto Carvalho Prata, “Academia de Coimbra – (1880-1926) – Contributo para a sua História”, Imprensa da UC, 2002
[3] “Estatutos da Universidade de Coimbra”, 1772
[4] Teófilo Braga, “História da Universidade de Coimbra”, Tomo III, 1898
[5] Outras razões aventadas têm a ver com a fraca qualidade do papel, gorduroso, e com a sujidade de gordura acumulada nas páginas, depois de muito manuseadas.
[6] Camilo de Araújo Correia, “Coimbra Minha”, Almedina, 1989
[7] Fernando Rolin disse-me um dia que o nome dos corvos seria "Giribitsman" e não "Giribites". 

Fotografias:
- Sebentas de Direito Civil e Direito Penal (manuscritas e litografadas): Foto do autor obtida no Museu Académico da Universidade de Coimbra.
 
- Maria Marrafa: Foto obtida da internet.
- Manuel das Barbas: Foto obtida de uma versão digital do livro "Typos de Coimbra" de Mário Monteiro, Livraria Editora Guimarães, 1908.

- Fado da Sebenta: Foto (do autor) de um original do folheto com a música e letra do Fado e do Hino da Sebenta.

25 comentários:

  1. A Sebenta



    O meu Avô Materno Dr. Juiz José Hipólyto de Moraes Carmona, 1877 -1945 foi sebenteiro …por necessidade. Tinha vindo de Bragança até Coimbra. Sendo órfão de Mãe e sabendo das dificuldades financeiras do Pai, pediu magra mensalidade contando com a tal libra de oiro mensal que seu Padrinho lhe tinha prometido.



    Cedo se deu conta que só a mensalidade paterna chegava às suas algibeiras pelo que toca de escrever sebentas à luz da vela - razão pela qual começou a usar óculos.



    Era daquelas sebentas copiadas a álcool que dava às letras uma cor magenta.



    Quando foi a férias, a primeira pessoa conhecida que ele encontrou foi o tal Padrinho, que lhe disse: “Afilhado! Olha que todos os meses eu tenho dado ao teu Pai a libra que te prometi.”



    Ele voltou às tarefas de sebenteiro… e assim tirou o Curso de Direito.



    Eu estava com ele quando morreu, em Coimbra, com apenas 68 anos…

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    1. Caro Augusto Carmona da Mota,
      Obrigado pelo teu comentário.
      Fazendo umas contas rápidas, o teu padrinho teria sido sebenteiro nos últimos 6 ou 7 anos do século XIX. Pelo que descreves, por essa época já seriam então utilizadas para copiar sebentas em Coimbra as copiadoras a alcool (processo stencil). A ser assim, esse processo co-existia com a litografia a sebo? Estarei eu a pensar bem?
      Um abraço,
      Zé Veloso

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    2. Olá Zé Veloso, no conceito que eu tinha, as cópias a álcool eram uma coisa e o processo 'stencil' era outra coisa diferente. - A álcool, com desenho passado para uma gelatina mediante uma solução alcoólica; e, depois constarem dessa gelatina, os contúdos eram repetidamente transpostos para o papel. O 'stencil' constaria de uma prévia impressão sobre um 'écran' de fino tecido, previamente emulssionado por substância sensível à luz. Depois de exposto à luz, esse tecido deixava 'em aberto' (portanto permeável à passagem da tinta) tudo o que fosse imagem; ou texto, mas considerado imagem. (Explicação muito "pela rama"). Mas pode estar a falhar-me algo...

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    3. Caro Zé Oliveira, muitíssimo obrigado pelo seu comentário. Você tem toda a razão.
      Eu não sou perito em técnicas de impressão e quando mais acima escrevi "(processo stencil)" deveria, pura e simplesmente, não ter escrito nada.
      Um grande abraço,
      Zé Veloso

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  2. Ricardo Figueireedo18 novembro, 2012 20:27

    Meu caro Zé Veloso
    Do que há, disperso por variada literatura, legislação e memórias sobre o assunto que de forma sintética, mas motivante, descreves, junto algumas notas:
    (1) “O Latim era a língua das aulas; nela se ditavam as postilas, (mais tarde chamadas sebentas) , que o aluno tinha de apresentar, rubricadas pelo professor , para provar a frequência.”
    (2)…”o lente faz a sua prelecção que ninguém ouve:uns devoram romances , outros lêem jornais, alguns fazem circular epigramas, muitos dormem a sono solto.
    Muitos fingindo que tomam apontamentos, fazem caricaturas, escrevem cartas de namoro, ou artigos para os jornais da terra….”
    Apenas um ou dois alunos, dos que não recebem farta mesada, tomam apontamentos a sério. São os chamados sebenteiros.”
    “Não se esqueça de que são duas sebentas por dia, cada uma com 16 páginas, pelo menos.”
    Mas-oh fatalidade!- eis que surge,traiçoeira , uma página completamente ininteligível; bocados em branco, porque as repectivas linhas não saíram, na pedra litográfica, um ou dois borrões a não deixar ver certas datas ou artigos importantes, linhas sobrepostas-um horror!”
    “A sebenta mal escrita, confeccionada à pressa sob apontamentos tirados nas aulas e dados pelos professores, mal litografados, por vezes quási indecifráveis, distribuídas em pequenas doses, pela noite fora – os restos, como nós chamávamos às páginas que íamos recebendo- foi odiada como um repugnante símbolo duma organização que merecia camartelo.”
    “Resposta solene do lente::-os apontamentos litografados pertencem a uma empresa particular, com a qual eu nada tenho.Os senhores têem obrigação de tomar apontamentos e organizar as lições..”
    (3).“…. . pelas notas que dão aos estudantes e quanto às portas que sempre se acham abertas”
    ……disse que o dito mestre lê muito bem …. e quanto às portas que sempre se acham abertas a seu tempo…”
    In- (1) A vida dos estudante de Coimbra(Antiga e Moderna)-Teixeira Bastos- Coimbra 1920
    (2) A minha velha pasta-Tempos de Coimbra Gente do meu tempo (1896-1901)
    Francisco de Athayde Machado de Faria e Maia-1937
    (3) Auto que o reverendo senhor prior de Santa Cruz e cancelário do estudo, etc. mandou fazer para haver informação de como os lentes lêem e aproveitam os ouvintes. (1541)

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    1. Obrigado, Ricardo!
      Agradeço-te este rol de informação que vai a um detalhe a que a crónica não vai mas que fica aqui optimamente como material de consulta extra.
      Um abraço, Zé Veloso

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  3. Ricardo Figueiredo18 novembro, 2012 21:36

    Boa noite
    Para evitar a pesquisa a alguns dos teus seguidores menos informados, pode ser útil o esclarecimento:LITOGRAFIA
    Técnica de impressão inventada por Aloys Senefelder em 1798, baseada no princípio de repulsão mútua entre substâncias aquosas e gordurosas. A impressão é obtida directamente do original, através de um desenho executado sobre a pedra litográfica(*) com um lápis gorduroso. A pedra, absorvente, é então humedecida com água. Aplica-se de seguida tinta litográfica, sobre a pedra, que repele a tinta (de base gordurosa), enquanto as zonas ocupadas pelo desenho a absorvem, podendo executar-se então a impressão. O princípio da impressão litográfica é usado em edição de livros, posters e estampas, tendo dado origem a processos de impressão mais complexos.
    (*)pedra calcária de grão muito fino

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  4. Ricardo Figueiredo18 novembro, 2012 22:14

    Lendo a portaria que proibe escrever nas aulas,referida nos livros mais usuais sobre temas da Academia de Coimbra,neste caso a Sebenta,achei que poderia ser interessante dar a conhecer o seu integral conteúdo, pela força dos seus termos.
    Portaria para que os estudantes da Universidade não podessem escrever nas aulas
    “Havendo respeito aos graves prejuízos que resultam do intolerável abuso, que de tempos a esta parte tem infelizmente grassado entre estudantes d´esta Universidade, que ou pela reprehensivel ambição de se pouparem aos trabalhos necessários para o seu aproveitamento, ou pelo excessivo desejo de não perderem coisa alguma da explicação dos seus mestres consomem todo o seu tempo em escrever nas aulas e em suas próprias casas as lições que mais proveitamente aprenderiam nos livros approvados por sua majestade para uso das mesmas
    aulas , e de cujas doutrinas são obrigados a dar umas exacta e inteira conta por todo o decurso do anno lectivo, e muito particularmente nos seus respectivos exames e actos.
    E sendo também informado de que o fatal aluvião de cadernos manuscriptos , cheios de erros grosseiros e misérias, que trazem sempre entre mãos, tem desterrado d’entre os mesmos estudantes o uso familiar de livros impressos e o hábito de os ler e manusear, de tal maneira , que há muitos que nem os mesmos compêndios das aulas das aulas que são obrigados a frequentar, já compram e fazem o seu estudo pelos referidos cadernos, que além de serem prejudiciais pela multidão de erros de orthografia , de linguagem, de methodo, e até de doutrina, em que em todos eles abundam, são também injuriosos aos autores a que a ignoranc ia ou a malevolência livremente os attribue.
    E para uma vez por termo ao progresso de um tão intolerável abuso, mando,que d’agora e para sempre se desterre e proscreva d’esta Universidade o pernicioso costume de se escrever nas aulas; e que os mestres mais não consintam, que os seus discípulos debaixo de qualquer pretexto que seja o continuem a praticar.
    E ordeno outro sim aos bedéis, que vigiem muito cuidadosamente pela exacta observancia d’esta importante providencia; e que tenham a vigilância em apontar todos aquelles estudantes que por qualquer modo a pretenderem iludir. Os quais pela primeira vez serão multados em1$600 reis para os mesmos bedéis que os apontarem , pela segunda pagarão a mesma multa em dobro, que terá a mesma aplicação, e incorrerão além d’isso na pena de dois meses de prisão, e de lhe serem havidos por sem causa as faltas que n’aquelle tempo fizerem nas suas respectivas aulas; e pela terceira finalmente ficarão incursos na perda irremissível do anno."
    E para que chegue a noticia a todos, etc, etc (1795)
    D.Francisco Raphael de Castro, principal da Santa egreja de Lisboa, reformador reitor da Universidade de Coimbra.

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    1. Muito interessante, Ricardo!
      Conhecia apenas um pequeno extracto, que vem referido no livro do Manuel Alberto Carvalho Prata, do qual fiz um mini-extracto que incluí na crónica.
      Não conhecia o texto original.
      Obrigado, Zé Veloso

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  5. Ricardo Figueiredo22 novembro, 2012 16:21

    Uma opinião:
    "Marrafa:velha sebenteira, ex-servente de algumas gerações académicas, é muito asseada,bem falante, delicada e temente a Deus"
    In"Cartas de uma tricana-Herlander Ribeiro(Coimbra de 1903 a 1908),pag.106 Ed.1936

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    1. Obrigado, Ricardo!
      Mas olha que a maioria das referências não apontam, a Maria Marrafa, assim tanta temência a Deus. Normalmente são-lhe feitas alusões muito dissimuladas mas que não enganam.
      Serrão de Faria, p. ex., dando-lhe já o desconto de ser um galaró de primeira, escreveu que Maria Marrafa acarinhava sempre os caloiros, "levando-lhe a sebenta fora de horas... por esquecimento desculpável".
      Zé Veloso

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    2. mais uma achega sobre a Marrafa:

      «E a Marrafa, a Maria, essa bella quarentona, bem fornidinha de carnes, que também foi
      lembrada no alludido Centenário?
      Isso é que é uma mulher! Servente de estudantes, portadora de sebentas, lá no intimo amiga dos que usam capa e batina, interessa-se por elles todos e já me constou, não sei se com fundamento, que não raras vezes lhes vale com dinheiro nos momentos críticos, nas suas afflicções.
      De grossos cordões de ouro ao pescoço, sempre sorridente, ha quem diga que para um estudante se formar é preciso ter algumas relações com ella. Eu é que não sei se isto é verdade, mas, pelo sim pelo não, como fui estudante… não desmenti a regra…
      Mas se por acaso alguns académicos se envergonham de ir pedir-lhe qualquer quantia emprestada, pelo que ella nada leva de juros,(...)»

      Typos de Coimbra, Mário Monteiro, 1908: 39

      Abraço João Baeta

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    3. Viva, João Baeta, obrigado pela achega.
      Muitos são os antigos estudantes que evocam a Maria Marrafa nos seus livros de memórias ou noutros escritos.
      É curioso que se referem a ela sempre com um misto de respeito, afecto, gratidão, como se fosse alguém da família, a quem se desculpam (e se escondem ou branqueiam) as fraquezas.
      Por isso, as referências às benesses amorosas que ia distribuindo aqui e ali aparecem sempre envoltas num manto de fantasia... manto que sugere mas não afirma taxativamente...
      Um abraço, Zé Veloso

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  6. Ricardo Figueiredo27 novembro, 2012 12:41

    Meu caro Zé Veloso
    Encontrei mais uma apreciação, subjectiva, é certo, para o retrato da Maria Marrafa
    “A republica polyarchica- A Marrafa
    Os nossos quatro estudantes do Laço da Amizade, habitavam uma casa que haviam alugado na Travessa do Seminário, junto à Arregaça….
    Pela manhã cedo apresentava-se na republica ao estudante de semana, director do rancho, a receber ordens para as compras do caldeiro, a Maria, a pequena da marrafa (*) assim alcunhada por usar erectas poupas e marrafa franjando a testa. Era esta servente trigueira, de esperançosos lombos, braços fornidos, bellas carnes, ainda que de architectura vulgar mas sólida. No dizer do associado José António, não era lá para essas coisas; mas , apreciavel porque se apresentava prompta para o serviço, alegre e correta, a tempo e horas, perfeitamente composta.
    Os serviços da pequena da marrafa , eram externos;
    (*)Esta rapariga foi celebrada por accasião do galhofeiro centenário da sebenta, em Maio de 1899.No nosso tempo não estava em evidencia. A Maria Marrafa é hoje assídua distribuidora das sebentas pelos estudantes que assinam a sebenta. Pela tardinha é vêl-a shair da lithografia, com ellas na mão, a casa dos estudantes a fazer a entrega.”
    In –Estudantes de Coimbra- B.M.Costa e Silva-1903-pag. 63

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    1. Interessante, Ricardo!
      Então a Maria Marrafa, antes de ter sido "servente das sebentas", era servente externa, fazendo serviços tal como ir à praça comprar víveres para casas de estudantes.
      Um abraço,
      Zé Veloso

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  7. Ricardo Figueiredo28 novembro, 2012 15:48

    Boa tarde, Zé Veloso
    Mais um tópico:
    “Alvará do Regimento das lições, exames, etc. (09 Novmebro de 1537)
    a)Obrigatoriedade para os lentes de lerem em latim, e para os estudantes de usarem esta língua <>.
    E agora, a parte mais interessante:
    “f) O reitor e o conselho escolheriam anualmente 3 estudantes para examinarem os <> que pretendessem frequentar as aulas de Leis e de Cânones. Os estudantes examinadores deveriam verificar se os candidatos estavam aptos e sabiam << falar latim dentro das escolas>>.O reitor podia assistir a estes exames quando quisesse”.
    In- Escritos sobre a Universidade de Coimbra VII-Joaquim Carvalho-Fund. Calouste Gulbenkian -1992

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    1. Obrigado, Ricardo.
      Mais uma interessante pesquisa.
      Um abraço,
      Zé Veloso

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  8. Ricardo Figueiredo04 dezembro, 2012 23:00

    Boa noite
    Respiguei mais umas notas sobre a SEBENTA, no percurso da sua estória:
    1-O Reitor publicou em 1 de Junho de 1807 um edital, fazendo constar que não seria admitido à matricula académica nenhum estudante que não apresentasse uma declaração da Imprensa da Universidade em como tinha comprado os compêndios do ano que pretendia frequentar, bem como os demais livros necessários para ouvir com proveito as lições respectivas.
    2-Como os estudantes preferissem utilizar as lições litografadas (a “sebenta”) em vez dos compêndios oficiais, e assim prejudicassem os seus estudos , o Dr. Vicente Ferrer Neto Paiva ( que viria a ser reitor em 1863-1864) apresentou no Claustro Pleno de 1 de Fevereiro de 1851 uma proposta, para que os professores universitários assumissem a responsabilidade pela correcção dessas lições, que só poderiam ser impressas ou litografadas com a sua respec tiva assinatura.
    3-“Nas ciências positivas da Universidade”, escreveu Seabra de Albuquerque,” é muito frequente distribuírem-se as lições litografadas. Um estudante de cada curso colhe durante a aula os apontamentos da explicação do respectivo professor e, alcançada a devida vénia, faz a lição e manda-a litografar. Este trabalho de escrita, e depois de litografia, é feito com tal precipitação que, muitas vezes, quando a lição chega ao seu destino, quase se não lê. E é por este mau estado da folha que entre a Academia se lhe pôs o nome de sebenta.” No ano lécito de 1874-1875,alguns estudantes sebenteiros reuniram-se e deliberaram entre si fazer imprimir as lições que vinham litografando. Assim se fez durante algum tempo, mas a ideia foi depressa posta de lado por o trabalho da tipografia ser mais lento que o litográfico.
    In - A Universidade de Coimbra e os seus Reitores-Manuel Augusto Rodrigues-1990-Pag. 177, 215 e 251

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  9. Ricardo Figueiredo27 dezembro, 2012 21:39

    Caro Zé Veloso
    Mais umas leituras e encontrei sobre o tema:
    “Eram íntimos amigos, sendo muito pobres. Como um dos meios de subsistência emquanto frequentavam a Universidade,estabeleceram uma litographia na rua do Guedes, em umas casas pertencentes ao sr. Francisco Maria Mattos Mascarenhas de Mancellos, do Sebal, concelho de Condeixa.
    Ambos os amigos trabalhavam na litographia e foram elles os primeiros que em Coimbra litographaram as chamadas sebentas.”
    “Os dois amigos, auctores d'essa Dissertação, eram o sr.D. João Pereira Botelho do- Amaral Pimentel, bacharel formado em direito, natural de Oleiros, que depois foi bispo de Angra; e o sr. António Ferreira Miranda de Oliveira,
    bacharel formado em Theologia, natural de Sernache do Bomjardim, e que depois foi chantre da Sé Cathedral de Leiria.”
    Essa publicação é a seguinte:
    « Dissertação sobre a infallibilidade do S. Pontífice, pelos dois amigos, bachareis em Theologia e Direito — Coimbra. Na
    Litographia dos Dois Amigos. 1848. »
    In-Algumas horas na minha livraria-Coligidos por Francisco Augusto Martins de Carvalho, pag. 31 Imprensa académica-Coimbra-1910

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  10. Ricardo Figueiredo27 dezembro, 2012 21:41

    Boa noite, Zé Veloso
    A referência à Rua do Guedes que se situava nas traseiras do edifício da Associação Académica (Rua Larga), na antiga Alta, e que conheci,merece este acrescento:
    “Foi na sessão da Câmara do dia 7 de Maio de 1936 que se tomou conhecimento de um ofício da Comissão Central da Queima das Fitas pedindo a acquiescência da Câmara no sentido de permitir que seja dado o nome do Dr. Alberto Costa(Pad-Zé) a uma das velhas ruas da Alta, prestando assim homenagem à figura mais representativa da praxe e da graça coimbrã”
    “…indicou-se antes a rua do Guedes para prestar essa homenagem” e, ainda, ”Mas um dos factos que mais tornou conhecido este local foi o estabelecimento ali de uma oficina litográfica, nos fins do século XIX, que foi a primeira a litografar «sebentas» e que veio a ser destruída por um incêndio. Posteriormente, na sessão da Câmara do dia 3 de Janeiro de 1901, resolveu-se deferir o pedido para a colocação de uma tabuleta com os seguintes dizeres: Sebentaria do Guedes”.
    In Toponímia Coimbrã (II) António Correia-Coimbra-1952

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  11. Ricardo Figueiredo18 abril, 2014 20:14

    “-E agora cá estou eu recostado…nos braços da embaladora Coimbra, a contas com as “sebentas”, que já não são litografadas nem, tão pouco, entregues ao domicílio pela viçosa e desempenada Maria Marrafa, nesta altura no calçado velho e vivendo apenas para os seus bentinhos se santinhos, no seu rés do chão da rua da Matemática, mas impressas e que nós vamos buscar , pelo próprio pezinho, às respectivas livrarias mediante o imprescindível pagamento.” Pag.16
    “Ora a Maria Marrafa, a senhora Maria, como vulgarmente era conhecida entre a rapaziada do meu tempo, sentindo-se, alturas tantas, algo pesadota e cansada, deliberou recolher-se, sossegadamente, ao seu quartito, rés do chão , sito na Rua da Matemática – artéria das mais típicas do rumoroso “Bairro Latino”-para apenas se entregar de alma e coração, à adoração dos seus “santinhos”, “bentinhos” e retratos de algumas dezenas de estudantes que frequentaram em diferentes épocas, a gloriosa e sempre querida Universidade” Pág. 24
    “Não longe do campo de operações , assistia ao desenrolar da folgança , acocorada no portal da sua modesta casita, como galinha no choco, a célebre Maria Marrafa , já aposentada quanto a estes assados , e lembrando-se, por certo, dos adoráveis tempos em que, igualmente , rodopiava, com perna leve e o coração num balouço, com qualquer azougado escolar de 1890.
    -Então, senhora Maria –diziamos nós para a ouvir- não vai um estaladinho, com mil demónios?
    E ela, toda risonha e cortês, respondia-nos que não, que não podia ser, que a deixassem entregue ao seu Rosário, ao seu Terço…Pág.134

    “Em qualquer fogueira de S.João, realizada na típica rua da Matemática, a célebre Maria Marrafa, que fora, nos seus belos tempos de rapariga, uma cabecinha d’ alhos chochos e leviana em extremos, censura, asperamente e acocorada no escalão da sua modesta casita, sita na mesma rua, o escandaloso saracoteio com que se pavoneiam, dançando com vários estudantes, a Lucinda engomadeira e outra cachopa conhecida , nos arraiais académicos, pela alcunha de “Faísca”…
    -Ai santo nome de Maria!.. Aquilo até parecem mulheres sem vergonha!...No meu tempo, sim, é que era seriedade e compostura !Agora! Valha-me o Santíssimo Sacramento!...Valha-me o Santíssimo Sacramento!...
    Pobre e saudosa Marrafa , que vias o argueiro no olho da vizinhança e não lobrigavas a …tranca no teu!”Pág.196

    “Morreu Maria Marrafa, quase octogenária, em Dezembro de 1935” Pag. 27
    In - A Coimbra Académica do meu tempo (1914-1918)-Jorge de Seabra-Porto 1948

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    1. Obrigado, Ricardo,
      Assim vão ficando registados num só local muitos outros depoimentos interessantes sobre o tópico "Sebenta", que o "post" inicial não poderia abarcar e dos quais não tinha sequer conhecimento.
      Zé Veloso

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  12. Maravilhosa esta descrição da "sebenta" universitária! Prosa muito bem escrita, bem pesquisada, divertida e verdadeira! Muito obrigada.
    Maria Teresa Lopes Pereira

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